Por Carlos Fino
– Grupos de pessoas violentamente agredidas ou arrastadas pela Guardia Civil, provocando pelo menos meio milhar de feridos, alguns deles com gravidade;
– assembleias de votação ocupadas, urnas apreendidas e milhões de boletins de voto confiscados;
– dirigentes do escrutínio e líderes locais eleitos detidos e submetidos a processos judiciais;
– comunicações de internet e redes sociais interrompidas…
O rosário negro da brutal ingerência espanhola no referendo catalão parece não ter fim.
Tudo isso para impedir o voto livre sobre a questão da independência desejado por pelo menos 70% da população.
A inépcia do governo minoritário conservador de Mariano Rajoy não poderia ser maior.
Ao recorrer à violência, gerando imagens chocantes que em tudo contrariam os mais elementares princípios democráticos em que assenta a União Europeia, Madrid, longe de estancar o movimento nacionalista, está, pelo contrário, a fomentá-lo.
Isso parece tão evidente que vários analistas consideram mesmo que essa foi uma estratégia maquiavelicamente concebida pelos líderes independentistas – provocar o touro espanhol para gerar repressão e capitalizar mais apoio na sequência da natural indignação.
Se foi assim ou não, só Deus sabe. Mas o resultado está à vista. O movimento pela independência só pode sair reforçado dos choques deste domingo nas ruas da Catalunha.
UM PROCESSO QUE VEM DE LONGE
Este foi apenas mais um episódio de um processo que vem pelo menos desde 2006, quando foi aprovado o projeto de novo Estatuto de autonomia da Catalunha. Votado com mais de 70% de aprovação e sancionado, em princípio, pelas Cortes espanholas (Parlamento), o documento foi todavia, questionado pelos conservadores do Partido Popular de Mariano Rajoy, que recorreram para o Tribunal Constitucional.
Em 2010, o supremo anulou 14 artigos do Estatuto, incluindo o reconhecimento da nação catalã e a primazia da língua, reduzindo ao mesmo tempo os poderes da Generalitat, o governo catalão, em termos de autonomia fiscal e judiciária.
Gerou-se assim um sentimento de bloqueio que levou à intensificação das correntes pró-independência. O raciocínio é o seguinte: não sendo possíveis mais avanços no quadro da lei de 1978 que consagrou as autonomias, ter-se-ia que romper com esse quadro legal.
Trata-se de um padrão histórico em Espanha. Ao contrário do que acontece na Alemanha ou na Itália, por exemplo, o poder central unitário espanhol sempre se concebeu como a fonte de toda a legalidade, anuindo, quando muito, a distribuir algumas prerrogativas, mas nunca admitindo ser ele o depositário de competências consensualmente delegadas ao centro pelas regiões.
Tudo isto com a agravante de que cada poder regional negocia com o centro a sua própria transferência de competências, o que gera assimetrias e conflito. Navarra e o País Basco têm, por exemplo, mais prerrogativas no plano fiscal do que a Catalunha. Barcelona há muito que reivindica estatuto semelhante, sem sucesso.
Entretanto, historicamente, o centralismo unitarista madrileno, longe de consolidar a união, tem gerado mais sentimentos nacionalistas.
No que respeita à Catalunha, foi uma intervenção repressiva dos militares espanhóis em órgãos de imprensa catalães, no começo do século XX, que gerou um movimento de solidariedade entre as forças políticas locais que haveria de colocar desde então a “questão catalã” no centro da política espanhola.
Tudo aconselharia, portanto, a dialogar e não reprimir. Mas a História parece nunca ensinar a tempo. Como disse Talleyrand dos Bourbons e dos nobres franceses regressados depois da queda de Napoleão, “Eles não esqueceram nada e não aprenderam nada”. Daí a opção pela violência.
Oxalá não se entre numa espiral e que ainda haja espaço para negociar. Sob pena de se ultrapassar rapidamente o ponto de não retorno.
Os países europeus, que foram tão lestos a reconhecer a fragmentação da Jugoslávia, nos anos 90, com as consequências trágicas que se conhece, agora sustentam Madrid, com receio da implosão da Espanha. Mas isso não basta – têm também que condenar a violência e fomentar o diálogo e as negociações.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.