Por Carlos Fino
Não haja ilusões – ao cabo da maratona negocial de dois dias com a Grã-Bretanha, a semana passada em Bruxelas, a União Europeia encontra-se mais debilitada que nunca.
É certo que as concessões foram um pouco menores do que Londres pretendia. Mesmo assim, porque atingem pontos essenciais do próprio projeto europeu, incluindo questões de solidariedade social e até o princípio de uma união cada vez mais forte, consagrado nos Tratados, a UE sai deste exercício claramente mais enfraquecida.
Os ingleses, que sempre desfrutaram de um estatuto especial, com “opt-outs” em diferentes áreas que os subtraem a deveres de solidariedade, vêem agora essa situação de privilégio reforçada: não integram a moeda única, não integram o espaço Schengen de livre circulação, não farão parte de qualquer eventual integração militar, não, não e não…
E se, mesmo assim, admitem ficar – o que ainda depende do referendo marcado para 23 de Junho, que irá ser duramente disputado, uma vez que à esquerda e à direita e no próprio governo do país há personalidades de enorme influência que irão fazer campanha pela saída – se mesmo assim admitem ficar, só o fazem porque temem perder dinheiro, influência e proteção, não por qualquer convicção europeísta.
Ao sair do encontro, sublinhando que não ama Bruxelas, mas sim Londres, o primeiro ministro britânico David Cameron foi bem claro: “Sair da Europa iria pôr em perigo a nossa economia e a nossa segurança nacional”. Reforçado o estatuto de grande excepcionalidade em relação ao comum dos membros do clube, a Grã-Bretanha – admite Cameron – estará melhor dentro do que fora, na medida em que isso lhe permitirá “exercer um papel de liderança a partir de dentro, participando na tomada de decisões cruciais que irão moldar o futuro.”
Num jogo arriscado, Cameron tenta assim conseguir o melhor de dois mundos – manter a Grã-Bretanha fora do movimento de crescente integração europeia e ao mesmo tempo conservar um lugar à mesa para aí defender da melhor forma os interesses britânicos.
O continuado reforço dos eurocépticos, que ameaçam com a saída pura e simples do país, serviu-lhe para obter de Bruxelas mais concessões, com as quais pensa agora poder vencer o referendo e de caminho reforçar o seu próprio poder.
Duas visões de futuro
A questão que divide a Europa não é nova. Desde o início da construção europeia que se trava internamente um debate sobre o tipo de União que se deseja. Enquanto uns, como a França e a Alemanha, sempre estiveram mais inclinados para um projeto relativamente centralizado, que acabaria, a prazo, por transformar a UE numa espécie de Estado Federal, outros, como a Grã-Bretanha, sempre resistiram à transferência de soberania que isso necessariamente implica, preferindo uma União mais inter-governamental e centrada fundamentalmente no espaço económico comum.
Por detrás destas ideias, perfilam-se também dois conceitos geoestratégicos diferentes – por um lado, as potências continentais, como a França, que gostariam de fazer da Europa um pólo de poder alternativo entre os EUA e a Rússia e a potência marítima que é a Inglaterra preferindo, pelo contrário, manter uma “special relationship” com os norteamericanos.
É esta última Europa que os americanos querem – uma UE que, em união indefectível com Washington, sirva de ponte para a extensão da democracia a Leste, se possível – como imaginou Brzezinsky – pelo menos até Vladivostok.
Não por acaso, De Gaulle vetou por duas vezes – em 1963 e 1967 – a entrada da Grã-Bretanha na comunidade europeia.
O acordo agora alcançado é uma tentativa de conciliação entre essas duas grandes opções – França, Alemanha e Itália mantêm o projeto de maior união, ao mesmo tempo que se reconhece à Inglaterra o direito de ficar de fora.
Mesmo beliscando direitos dos seus nacionais que vivem e trabalham no Reino Unido, o estatuto especial dos britânicos – agora reforçado – não deixará de ser bem acolhido na generalidade dos países do Leste europeu, ainda traumatizados pelas décadas de submissão à URSS, e por isso muito susceptíveis e relutantes a quaisquer futuras cedências de soberania.
Mais desigual devido à crise económica e aos impasses do Euro, que estão longe de ter sido ultrapassados; a braços com uma onda de imigração sem precedentes e com um foco de instabilidade e guerra ainda não superado na Ucrânia; com EUA e Rússia concentrando armamento nas suas fronteiras, a UE vive dias conturbados, com divisões crescentes entre os seus membros, numa clara tendência de fragmentação para a qual alertou no passado dia 15 o próprio presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, ao afirmar que “o risco de desmembramento é real”.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.