Uma montanha russa chamada Donald Trump, por Carlos Fino

Por Carlos Fino

EUA_EstatuaLiberdadeCaos nos aeroportos, milhares de pessoas em trânsito com as vidas em suspenso e muitas famílias divididas; abandono de tratados longamente negociados; advertências ao Irão e à China; velhos aliados dos EUA como México e Austrália desconsiderados; Aliança Atlântica taxada de “obsoleta”; previsão de mais desintegração para a União Europeia a seguir ao Brexit; industriais intimados a investir no país sob pena de medidas fiscais retaliatórias; guerra aberta com os media; conflito agudo com o judiciário, incluindo desconsideração pública sem precedentes do juiz de Seattle que suspendeu as medidas restritivas em relação à imigração…

As primeiras duas semanas de Donald Trump na presidência dos EUA não podiam ter sido mais agitadas e surpreendentes. Em apenas quinze dias, Trump não só agitou fortemente o mundo económico, político e social interno, como ameaçou pôr em causa os próprios fundamentos da ordem mundial vigente.

Tudo agravado pelo facto de algumas das figuras-chave do novo governo acabarem por contradizer, numa ou noutra circunstância, as próprias posições do presidente.

Caso mais flagrante – a intervenção da nova embaixadora americana nas Nações Unidas, afirmando que as sanções contra a Rússia se manterão enquanto se mantiver a anexação da Crimeia, em clara contradição com a manifesta e reiterada simpatia de Trump por Pútin, indiciadora de um desanuviamento das tensões com Moscovo.

Já depois disso, aliás, em entrevista à Fox – a única grande cadeia televisiva americana que parece apreciar – Trump voltou a dizer que “respeita” o líder russo.  E quando confrontado com o facto de que muitos no seu próprio partido republicano consideram Pútin “um criminoso”, Trump respondeu com surpreendente franqueza: “Assassinos há muitos – acha o nosso país inocente?” (sic).

George Orwell volta ao topo de vendas

Em minoria na Câmara e no Senado e por isso sem condições de contrariar as políticas presidenciais, os democratas estão furiosos e apelam à resistência cívica, vendo nas posições do judiciário uma saída para barrar algumas das medidas mais controversas do novo inquilino da Casa Branca.

Entretanto, os decretos e as polémicas declarações presidenciais sobre as mais diferentes matérias sucedem-se diariamente, num activismo raramente visto.

E não é só no conteúdo das medidas que Trump surpreende. O seu próprio estilo contraria o politicamente correto e choca as camadas mais urbanas e sofisticadas.

O à-vontade e a sem cerimónia com que se movimenta nos corredores da Casa Branca dessacraliza as instâncias do poder dando a sensação de que chegou não só para inaugurar uma nova política, mas todo um novo estilo de governar, acentuando a sensação de que estaríamos a entrar numa nova era.

Alguns, como Bernie Sanders, rival de Hillary Clinton no partido democrata, chegam a acusá-lo de estar a empurrar o país para o autoritarismo.

Uma opinião que parece ser largamente partilhada, a avaliar pelo inesperado aumento de vendas nos EUA de um clássico da literatura política mundial – o célebre 1984 de George Orwell, que descreve uma sociedade concentracionária em que a verdade é manipulada e a figura do líder – o Big Brother – que tudo vigia e em tudo dita a sua vontade – é omnipresente, sem espaço para a liberdade individual.

Ainda é cedo para prever como tudo irá evoluir. As contradições são muitas – incluindo na composição do próprio governo – e diferentes e por vezes até opostas as opiniões das figuras que o integram.

Algumas políticas já anunciadas poderão ainda, sob efeito dos protestos da opinião pública e dos obstáculos legais encontrados, sofrer correctivos e ajustes.

Para já, entretanto, domina o imprevisto numa sequência muitas vezes errática entre dois pólos, mal havendo tempo para respirar, como numa montanha russa. Que na Rússia, aliás, e talvez até com mais fundamento, se chama montanha americana.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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