Turquia – o golpe de Erdogan. Por Carlos Fino

 

Por Carlos Fino

Iniciada na passada sexta-feira, dia 15, e terminada em fracasso menos de 24 horas depois, a nova irrupção dos militares na cena política turca (a quinta, nos últimos 56 anos – uma por década), foi tão patética que deixou perplexo o mundo inteiro e levantou até suspeitas de que a aparente tentativa de golpe poderia afinal ter sido montada pelo próprio presidente do país.

Eleito chefe de Estado em 2014, depois de 11 anos consecutivos no poder como primeiro-ministro, à la Pútin, Recep Erdogan embarcou desde então numa deriva autocrática cada vez mais acentuada e  pode agora, a pretexto da tentativa de golpe, reforçar exponencialmente o seu poder.

O imã muçulmano Fethullah Gulen, líder do Hizmet (Serviço), um movimento social e religioso com grande influência, que começou por apoiar Erdogan, mas depois se transformou num dos seus maiores opositores, foi um dos primeiros a levantar essa hipótese.

Do seu auto-exílio na Pensilvânia, onde se refugiou no final dos anos 90 para escapar da perseguição do regime, Gulen afirmou: “É possível que estejamos perante um golpe montado a fim de justificar mais acusações”.

Inépcia ou engano?

Os militares chegaram a atacar a sede do Parlamento e um helicóptero disparou contra os populares que vieram para as ruas protestar. Houve também aparentes tentativas de controlar a rádio e a televisão, mas – espantosamente! –  a internet continuou a funcionar e foi através dela (FaceTime) que Erdogan se dirigiu aos seus apoiantes para virem para as ruas resistir.

Se a tentativa de golpe foi genuína, os militares envolvidos deram provas de grande descoordenação e inépcia, mais parecendo estarem a executar um acto desesperado do que uma acção bem pensada e planeada. E no momento da verdade parece não terem tido estômago (ao contrário do general Al-Sisi, no Egipto, em 2013) para enfrentar e reprimir em grande escala a população que protestava.

Ainda assim, dos confrontos resultaram quase três centenas de mortos, mais de cem entre os próprios militares, que baixaram as armas e passaram a ser perseguidos e atacados pelos populares.

Mas também não é de excluir que muitos dos membros das forças armadas envolvidos tenham sido induzidos em erro quanto à finalidade da operação. No sábado, alguns afirmaram terem sido enganados, dizendo que antes de saírem dos quartéis lhes comunicaram que se tratava de um simples exercício…

Uma “dádiva dos céus”

Real ou fictícia, a aparente tentativa de golpe conferiu a Erdogan um pretexto suplementar para intensificar a perseguição aos seus adversários que, numa espécie de golpe de Estado larvar, vem promovendo desde 2013, quando ainda primeiro-ministro, reprimiu violentamente as manifestações contra um polémico projeto urbanístico numa das praças centrais de Istambul.

Quando, em Dezembro desse mesmo ano, rebentou um escândalo de corrupção em que estariam envolvidos membros da sua própria família (um esquema em que eram violadas as sanções americanas contra o Irão), Erdogan fez saneamentos em massa no aparelho de Estado, em particular na polícia, ministério público e judiciário e praticamente suprimiu a liberdade de expressão e de imprensa no país. A Turquia é o quarto país do mundo com mais jornalistas presos.

Por outro lado, Erdogan voltou a reprimir severamente o movimento pela autonomia dos curdos, ao mesmo tempo que intensificava a participação do país na guerra da Síria, o que levou à reação dos islâmicos radicais, traduzida em sucessivos atentados terroristas.

Criou-se assim um clima de grande tensão e medo, com o país cada vez mais radicalizado e muito dividido entre os incondicionais do presidente e os seus adversários, quase em proporções idênticas.

Agora, real ou fictícia, a tentativa de golpe confere a Erdogan uma oportunidade de ouro (“uma dádiva dos céus”, na sua própria expressão) para intensificar o seu domínio, afastando o que resta da oposição no aparelho de Estado e criando no país um clima de intolerância, em que não há mais adversários, mas apenas inimigos e que em toda a oposição é tratada como um vírus que precisa de ser extirpado.

Desde que os militares regressaram aos quartéis, já foram detidas mais de 6000 pessoas e as autoridades estão inclusive a pensar alterar a lei para permitir a pena de morte para os golpistas, o que constituiria violação do princípio básico da não retroatividade do Direito. Também no sábado foram afastados quase três mil magistrados, incluindo pelo menos um do Supremo Tribunal.

O objetivo parece ser o de substituir o regime parlamentar vigente por um regime presidencialista, em que todo o poder estaria concentrado nas mãos do chefe de Estado. Depois da caça às bruxas e da limpeza radical da administração pública agora em curso, com as vozes da Oposição silenciadas, Erdogan conta ter o caminho livre para fazer aprovar essa viragem, seja por votação no Legislativo, seja por via de um referendo, que no clima exacerbado atual certamente teria facilidade em ganhar.

Possível aliado, mas não igual

Afastada durante largos anos do poder pelos militares de inspiração laica que seguiam a linha do fundador da República, Mustafa Ataturk, uma massa mais conservadora  de religiosos praticantes acabou por ver-se representada nos políticos do AKP – Partido Justiça e Desenvolvimento – que se tornou na última década a força dominante da política turca, obtendo sistematicamente entre 40 a 50% dos votos.

Erdogan apresentou-se inicialmente como um conciliador, procurando o justo equilíbrio entre a religiosidade intrínseca do país e os princípios da democracia, chegando por isso a ser visto no plano internacional e em particular na Europa como o homem capaz de conciliar Islão e liberdade.

Daí, também, a possibilidade admitida pela União Europeia de – contra toda a história do continente, feita de séculos de confronto com o império turco – um dia vir a incluir a Turquia nas suas fileiras.

Mais fácil dizê-lo, no entanto, do que concretizá-lo. A ideia – fomentada por razões estratégicas pelos Estados Unidos – sempre desagradou a algumas elites europeias, em particular na França, e agora, com a deriva autoritária de Erdogan, esses planos parecem cada vez mais remetidos para as calendas gregas.

Real ou fictício, o golpe turco repõe as realidades geopolíticas no seu lugar – embora com um pé na Europa, a Turquia – país charneira entre continentes e impérios – pode até – quando pacificada, ser um aliado. Mas está longe de ser um igual.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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