Três séculos de diplomacia arquivada com muitas histórias por contar

Da Redação
Com Lusa

São quase 40 quilômetros de documentos trocados entre Portugal e as suas representações diplomáticas, que contam a História do mundo nos últimos três séculos através do olhar dos diplomatas.

Parte deste acervo, está distribuído entre a Torre do Tombo e os arquivos dos 134 postos diplomáticos de Portugal no mundo (76 embaixadas, 49 consulados e 9 missões permanentes).

O restante, incluindo o fundo mais antigo, está guardado no Arquivo Histórico-Diplomático (AHD), em Lisboa, no mesmo Palácio das Necessidades que acolhe o ministério dos Negócios Estrangeiros.

Apesar dos 6.000 metros de documentação que ali estão armazenados, a responsável do AHD, Margarida Lages, já não se perde entre as pastas, caixas, arquivos, envelopes e documentos que se distribuem pelas prateleiras alinhadas nos corredores labirínticos, numa desorganização apenas aparente.

Na sala dos telegramas, que contém “milhões” de documentos, aponta para as capas vermelhas e verdes que separam os “expedidos” dos “recebidos”, todos eles divididos por períodos e postos diplomáticos que vão de Alexandria a Zagreb.

No cofre forte guardam-se originais e cópias certificadas dos atos internacionais subscritos por Portugal.

Mas nem só documentos diplomáticos, que dão conta das relações externas que Portugal mantém – ou manteve – com outros países, é possível encontrar neste arquivo.

Também a documentação administrativa relativa aos serviços consulares prestados a portugueses que residem fora de Portugal, como registros de nascimento e de casamento, até à década de 90, é aqui conservada.

E são cada vez mais os curiosos que procuram aceder aos documentos guardados no AHD, entre investigadores, estudiosos ou meros cidadãos que procuram ascendentes portugueses ou que querem conhecer melhor a história dos seus antepassados, nomeadamente norte-americanos descendentes de judeus sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, muitos dos quais salvaram a vida graças ao cônsul português em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes.

É por uma estreita escada em caracol que Margarida Lages acede à esplendorosa Biblioteca da Rainha para mostrar o livro salvador.

Datado de junho de 1940 e classificado no ano passado como registo da Memória do Mundo pela UNESCO, que lhe deu “uma dignidade e uma visibilidade muito maior”, o livro de registos consulares de Sousa Mendes foi a porta de saída para muitos judeus que tentavam fugir do avanço nazi em França.

Muitos descendentes de judeus encontram os seus familiares através deste livro, adianta Margarida Lages.

“Há uma procura imensa [do AHD] porque temos a parte consular [relativa] de descendentes lusos e temos a parte da Segunda Guerra Mundial. Chegam a perguntar-nos sobre familiares que foram para Portugal com um visto de Aristides de Sousa Mendes e querem saber dos seus avós. No ano passado, um rapaz de 26 anos queria que lhe mostrasse o nome do avô e quase chorou porque se não fosse esse visto, ele não teria existido”, comentou a historiadora, salientando que este local faz parte das “peregrinações” anuais da nova-iorquina Sousa Mendes Foundation.

Este não é o único “tesouro” da Biblioteca da Rainha, que deve o seu nome à rainha D. Amélia, última rainha de Portugal e viúva do rei D. Carlos, assassinado em 1908.

Ao lado, expõem-se os álbuns do protocolo, “registros das mais importantes visitas e manifestações protocolares” em Portugal, incluindo uma visita do generalíssimo Franco a Lisboa, e o álbum dos funerais da rainha D. Amélia, que teve uma “espécie de funeral de Estado dirigido pelo próprio presidente do Conselho. Segundo Margarida Lages, Oliveira Salazar fez questão de tratar de tudo ao pormenor, tal como tinha fez posteriormente com a visita da rainha Isabel II em 1957, encarregando-se até da ementa do banquete servido na altura.

Mas são mesmo as cerca de 1500 caixas antigas que estão arrumadas nas paredes da biblioteca que primeiro atraem o olhar dos visitantes: guardam documentação administrativa e diplomática antiga do MNE, constituída por trocas de correspondência entre o ministério e os postos diplomáticos existentes, alguns da segunda metade do século XIX.

Entre estes consulados e legações, nome que se dava anteriormente às embaixadas, encontram-se algumas representações diplomáticas surpreendentes, como as de Ayamonte-Badajoz, Sevilha e Cadiz, em Espanha, estados brasileiros como o Rio de Janeiro, Pará ou Maranhão, Zanzibar, São Petersburgo, Tunis e Sião, aponta Margarida Lages, detendo-se por alguns instantes na caixa da legação de Londres, onde se encontra alguma correspondência manuscrita do Conde do Lavradio datada de 1857.

Ontem, tal como hoje, a missão dos diplomatas passava por relatar minuciosamente os acontecimentos à sua volta.

Descreveram desde a entoação de voz e a expressão dos embaixadores com quem se encontravam, como Armindo de Sttau Monteiro (pai do escritor, Luís de Sttau Monteiro), narraram de forma vívida os dias dramáticos que se viveram em Paris pouco antes da ocupação alemã, como o encarregado de Negócios da Legação da capital francesa em 1941, José Bívar Brandeiro, ou testemunharam a queda dos Romanov, como o último embaixador da Rússia czarista, Jaime Batalha Reis, apanhado em 1917 nas vicissitudes da Revolução Russa.

Atualmente, a linguagem diplomática abandonou o registro literário e a formalidade associada a “algum temor reverencial” e tornou-se “bastante mais natural”. Mas a tipologia da correspondência diplomática pouco mudou, apesar de a tecnologia ter exigido a reconversão para os meios digitais e de os embaixadores também já usarem whatsapp.

“Relativamente à tipologia documental, as coisas mudaram muito pouco desde o século XVIII quando foi criada a secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. O que é interessante verificar é que os documentos não mudam com a velocidade que a técnica nos obriga, ou seja, o tipo de documento do ponto de vista formal é o mesmo: o telegrama, o ofício, a carta, o memorando, o apontamento, o relato, o relatório… tudo isso são tipos de documentos que continuam a existir, tal como a classificação de confidencial, secreto, muito secreto pessoal, particular”, explica Margarida Lages.

Graças à evolução tecnológica, muitos dos documentos que estavam em risco de se perder já foram digitalizados, e muitos dos documentos entretanto produzidos já são guardados no seu formato digital original. Por isso, daqui a 50 anos, o arquivo vai ser “provavelmente diferente”.

Mas a responsável do AHD lembra que “o espaço digital também não é infinito”, pelo que o papel vai sempre sobreviver.

“O digital nunca substituirá completamente papel” porque há documentos “que nunca vão sair do papel” como os acordos e tratados internacionais, que ainda impõem a formalidade da escrita.

“Se calhar ainda hei-de ver os ministros a assinarem com um cartão, mas não é para já”, sorri.

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