Anos atrás, um velho militante sindical metroviário, Sr. Amaro, emprestou-me um livro que dizia ser dos seus prediletos. Obra que desejava tivesse maior divulgação para o grande público. Era um livro do dominicano mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, e se intitulava “Batismo de Sangue”. Narrava a história de outro dominicano, Frei Tito de Alencar Lima, ocorrida em um período muito triste da vida brasileira, isto é, a ditadura militar, que foi imposta sobre o país a partir de 1964. Vinte anos de opressão política que terminou somente em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves e sua substituição pelo seu vice, José Sarney, após doença e falecimento do mineiro. O caso é que, durante o mais selvagem momento dos ‘anos de chumbo’ vividos, Frei Tito acabou sendo capturado e violentado brutalmente pela repressão. Frei Betto descreve este calvário iniciado em 1969 para Frei Tito, acusado de subversão à ordem pelos militares. Ele ficou retido na capital paulista, no Presídio Tiradentes, DOPS, de onde foi retirado em 1970 para o quartel da Rua Tutóia, levado pelo capitão Maurício Lopes Lima que disse, então, a famosa frase: “agora você vai conhecer a sucursal do inferno”. Estava dada a senha.
Conforme a obra, Fernando Gabeira, outro prisioneiro do local, testemunhou o sacrifício do religioso. Queriam informações sobre o congresso da UNE em Ibiúna, 1968, do qual ele negava saber detalhes especiais. Foi por isso dependurado no pau-de-arara e sentado na ‘cadeira-do-dragão’ – feita de chapas metálicas e fios -; levou choques elétricos na cabeça, nos tendões dos pés e nos ouvidos durante três dias. Seis assistentes queimaram pontas de cigarro em seu corpo. Fizeram-no passar pelo ‘corredor polonês’. Recebeu pauladas nas costas, no peito e nas pernas. Suas mãos apanharam de palmatória. Vestiram-no com paramentos e o fizeram tomar descargas elétricas na boca, o que chamaram de ‘hóstia sagrada’. Os militares juravam que se ele sobrevivesse, nunca mais iria esquecer-se daqueles dias de valentia, resistindo a ‘entregar os companheiros’. Frei Tito escreveu, então, em sua Bíblia no cárcere: “É preferível morrer do que perder a vida”. Cortou seu pulso com uma gilete. Mas, foi salvo a tempo.
Em dezembro de 1970 ele foi liberado. Trocado junto de outros prisioneiros pelo embaixador suíço, seqüestrado pelos guerrilheiros da VPR. Frei Tito foi para o Chile, desembarcando em Santiago. Sua mudança para Roma foi negada pelo Colégio Pio Brasileiro, uma referência de formação da elite religiosa, por sua fama de ‘terrorista’. Dirigiu-se para Paris, rumo ao Convento de Saint Jacques, que lutou pela Resistência Francesa na II Guerra Mundial. Dali ele transferiu-se para o Convento de I’Arbresle, nas cercanias de Lyon, onde passava os dias pensativo, ausente, como se tornou quotidianamente desde que deixara o Brasil. Era um homem arruinado psiquicamente. Ouvia continuamente a voz rouca do delegado Sergio Paranhos Fleury, seu algoz, e o vislumbrava em cafés e boulevares, fantasmagórico, onipresente, perseguindo-o continuamente.
Médicos recomendaram que fizesse tratamento com trabalhos manuais, coisas menos teóricas e intimistas. Foi para Villefranche-sur-Saône e alugou um pequeno cômodo numa pensão de imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas ele pagava com o próprio salário de horticultor, atividade que começara a desenvolver. Em seu caderno de poemas escreveu “São noites de silêncio / Vozes que clamam num espaço infinito / Um silêncio do homem e um silêncio de Deus”. Um indivíduo massacrado e perdido em seu abismo pessoal.
Em um sábado, dia 10 de agosto de 1974, frei Roland Ducret foi visitá-lo. Bateu à porta de seu quarto, na zona rural. Ninguém respondeu. Nada se movia. Um estranho cenário. E ali estava a tragédia escancarada: debaixo da copa de um álamo, balançava o corpo de Frei Tito. Ele tinha 28 anos quando morreu e alcançou a verdadeira liberdade. Em 1983 seus restos mortais voltaram ao Brasil. Foram descansar, definitivamente, em sua cidade natal, Fortaleza.
A ditadura brasileira foi o coroamento de um processo que já veio se delineando desde o suicídio de Getúlio Vargas, passando pelas tentativas de golpes contra JK, na tumultuada experiência de Jânio Quadros até então atingir a efetivação do caso contra João Goulart, ex-ministro de Getúlio e então presidente constitucional. Há poucos dias, inclusive, documentos obtidos pelo jornal Pagina12 revelam com clareza que o Brasil serviu como cérebro logístico da repressão na América Latina. Militares brasileiros espionaram, prenderam e entregaram cidadãos de outros países para “ditaduras amigas”. Políticos, sindicalistas, estudantes, religiosos, jornalistas entre outros, foram espreitados, presos, torturados e muitas vezes desaparecidos nessa época.
Todos estes elementos fazem parte de uma lembrança que jamais poderá ser ocultada e que agora teve, aprovada no Congresso, a ‘Comissão da Verdade’ para investigar violações dos direitos humanos cometidas por razões políticas no país entre 1946 e 1988. Com sua instalação haverá o prazo de dois anos para que seja redigido o documento final da pesquisa que se dará através de requisição de documentos em órgãos públicos e também convocação de testemunhas. Não terá o direito de punir, contudo, determinará culpados e razões de seus atos, clareando a história e dando ‘nomes aos bois’. E não é um mero revanchismo. É o direito legítimo das famílias em relação ao governo, por exemplo, de saberem onde foram mortos seus entes queridos, como e em que circunstâncias aconteceram seus desaparecimentos?
Memórias de Frei Tito podem ser acessadas em http://www.adital.com.br/freitito/por/index.html. Elementos de luta contra a tortura e a Comissão de Justiça e Paz podem ser encontrados em http://www.torturanuncamais-sp.org/site/ e http://www.cbjp.org.br/.
Como havia me dito anos atrás o sr. Amaro, que me emprestou o livro de Frei Betto, expondo os eventos acima, a história não pode ser distorcida e ocultada. Todos precisam ter conhecimento de sua veracidade. E é o mais puro fato. Crimes e violência devem ser combatidos e denunciados, não encobertos e muito menos perdoados, especialmente sendo cometidos por agentes de um estado democrático republicano. Sucesso à Comissão da Verdade. Força e determinação. Pelos direitos plenos aos cidadãos. Tortura, nunca mais! São Paulo, 24 de novembro de 2011
Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.
3 comentários em “Tortura, Nunca mais!”
Grande Mestre Amaral.
É importante que artigos como este sejam escritos, para que nunca se apague na memória daqueles que viveram esta difícil época da historia brasileira, e para alertar aqueles que agora formam seu caráter, mostrando o quanto pode ser doloroso a falta de piedade, de respeito, de amor ao próximo, como pode ser cruel a morte em vida imposta pelos donos do poder.
1 grande abraço Mestre.
Caríssimo professor, parabenizo-lo pelo seu belo e importante artigo.
Para aqueles que não conhecem, recomendo, além do livro escrito por Frei Betto, e já citado pelo Mestre Amaral, o filme homônimo dirigido por Helvécio Ratton.
Acompanhando a História de nosso país é certo afirmar que a formação de uma Comissão que averigue tais crimes contra os direitos humanos durante uma parte de um de nossos longos períodos militares é uma vitória. No entanto, bem sabemos que ainda estamos longe de uma conquista mais concreta. A Comissão da Verdade está repleta de falhas e limitações. Mais parece uma resposta imediatista frente a pressão que a ONU vem exercendo para que o Brasil tome providências quanto a este assunto.
A maior vitória, acredito, se dará quando a maior parte dos brasileiros entender o que foi e significou a Ditadura civil-militar brasileira, e, principalmente, compreender as consequências que herdamos deste episódio.
Olá Professor!
Também pude conhecer um pouco da história do Frei Tito através do filme homônimo ao livro. Fico extremamente chocada com os relatos sobre a ditadura, a impressão é que as atrocidades desse período foram uma espécie de ficção, porque realmente é muito difícil conceber algo tão horrível vindo de seres humanos contra outros.
Outra história, entre tantas, que me impressionam muito e que não me esqueço desde que vi um documentário (da TV Câmara) e li a respeito, foi a de Vera Sílvia Magalhães socióloga, economista e ex-guerrilheira do MR-8, falecida em 19 de dezembro de 2007. Vera foi também uma personalidade admirável que sofreu torturas absurdas durante tres meses, inclusive em estado de coma em hospital militar. Carregou muitas seqüelas físicas (crises psicóticas, problemas renais e câncer) e emocionais até o fim de sua vida.
Fico pensando na quantidade de seres humanos que foram barbarizados anonimamente, nos anos de ditadura. E o que interesses imperialistas podem fazer com tantas vidas.
Apesar de ter nascido logo após estes tristes anos e de saber somente o pouco que estudei como brasileira, eu espero que um dia essas histórias possam de fato vir à tona sem meias verdades, é o mínimo que pode ser feito por tantas memórias e para que possamos ter a dimensão real do que foi a ditadura militar no Brasil.
Um grande abraço!