“Porque faço parte da humanidade, a morte de cada homem diminui-me; por isso nunca pergunto por quem os sinos dobram: dobram por mim.”
John Donne (1572-1631)
Em dezembro de 1961, tinha eu treze anos, Artur Agostinho descrevia pela rádio, em tons dramáticos e pesarosos, a invasão pela União Indiana dos territórios sob administração portuguesa no subcontinente. Com as badaladas dobrando em fundo, o locutor acentuava que “Os sinos da velha Goa e as bombardas de Diu serão sempre portugueses.”
Sentado junto ao velho Schaub-Lorenz colocado sobre um armário num dos cantos do salão de entrada da Sociedade Artística, em Fronteira, onde aos domingos se ouviam os relatos de futebol, eu escutava aquilo com atenção e espanto. Embora ainda longe de entender todo o alcance do que se estava a passar, percebia claramente que havia perda, dor e impotência. O velho Menezes, chefe das Finanças, que estava perto, não escondia o seu desconsolo e preocupação: “Não temos quem nos defenda… Não temos quem nos defenda…” – dizia ele repetidamente, como num coro de tragédia grega, desalentado e com receio do que ainda estivesse por vir.
Passados 61 anos sobre essa tarde cinzenta do nosso descontentamento coletivo, eis que me vejo colocado em posição algo idêntica à do velho Menezes de então. Face ao trágico desfecho da morte de Ihor nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, sobre cujas circunstâncias se foram, nas últimas semanas, sabendo mais e mais terríveis pormenores, também eu poderia talvez dizer: “Não temos quem nos defenda, Não temos quem nos defenda…”.
Na altura, o que estava em causa era a manutenção do império colonial; para o velho Menezes, os representantes do Estado português haviam falhado ao recusarem as ordens de Salazar para oferecer resistência, acabando por capitular sem glória. Desta vez, os representantes do Estado, responsáveis numa das linhas da frente pela imagem do país no exterior, também falharam grosseiramente ao infringir todas as normas de tratamento humanitário prescritas na lei.
Espero que haja, entretanto, uma diferença crucial entre os dois casos: enquanto a defesa do império colonial já era insustentável desde que, em 1947, a Inglaterra reconhecera a independência da Índia, não havendo por isso razão para sacrificar mais vidas num combate desigual, a defesa dos princípios democráticos e humanitários em que deve assentar toda a atuação do Estado – pese embora a deriva do “trumpismo” que alastrou pelo mundo nos últimos anos e parece querer chegar agora a Portugal – não é algo do passado e sem regresso; pelo contrário – é o próprio pilar em que assenta um futuro digno das nossas sociedades.
Por isso, no caso de Ihor, o que mais choca, para além da sua morte criminosa é a aparente indiferença dos nossos políticos e de boa parte da população face a situação tão trágica.
Desde pelo menos a revolução francesa, sabemos como tem sido muitas vezes difícil estabelecer o necessário equilíbrio entre liberdade e autoridade – as duas grandes forças que em permanência se defrontam nas sociedades. Mas precisamente por isso e numa altura em que as tendências autoritárias e anti-humanistas de novo ganham força – é que um caso extremo como este deveria ter sido aproveitado pelos responsáveis políticos para enfatizar a necessidade do respeito absoluto pelas normas de um estado democrático e de direito.
Ao não o fazerem, deram um sinal de aparente acobertamento da violência, o que é insustentável. Preferindo, pelo silêncio, a autoridade à liberdade, arriscam-se a chocar o ovo da serpente, expondo assim a generalidade dos cidadãos ao arbítrio do Estado, seja no silêncio reservado das esquadras de polícia sem controlo, onde pode sempre nessas circunstâncias acontecer o pior, seja na displicência e arrogância com que muitas vezes os cidadãos comuns são tratados nos diferentes serviços públicos, sem que haja formas transparentes e expeditas de recurso.
É por isso que todos somos Ihor: não porque estejamos todos unidos no protesto – longe disso, infelizmente – mas porque nos vimos de repente na mesma condição: se aconteceu a ele, pode bem acontecer a cada um de nós.
Por Carlos Fino
Jornalista, doutorado em Comunicação pela Universidade do Minho. Foi conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal no Brasil (2004-2012)