Síria: cessar-fogo aguenta, apesar das explosões

Por Carlos Fino

LAVROV_KERR_ONUUma dúzia de explosões em Damasco e bombardeamentos dispersos em diferentes regiões, em particular no norte, junto à fronteira com a Turquia, ilustram bem a fragilidade do cessar-fogo na Síria, que entrou em vigor à meia-noite da passada sexta-feira, na sequência de apelo aprovado por unanimidade no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Com quase uma centena de grupos armados no terreno, muitos deles com apoios e fidelidades cruzados, que vão da Turquia, Arábia Saudita e países do Golfo aos Estados Unidos, de um lado; à Rússia e ao Irão, passando pelo Hezbollah libanês, do outro – obter um silêncio generalizado das armas é quase missão impossível. Tanto mais que ficaram fora do acordo quer o chamado Estado Islâmico (ISIS ou DAESH), quer os grupos que a ONU considera terroristas, designadamente o poderoso Al-Nusra, ligada à Al-Qaeda.

A situação complica-se ainda mais porque não há propriamente uma linha da frente. O que existe, pelo contrário, são múltiplos focos de confronto, com incursões mútuas, bolsas de resistência e territórios duramente disputados, hoje controlados por uma força, amanhã por outra. Pior um pouco – nalguns casos, grupos extremistas são o principal apoio da chamada oposição moderada ao regime de Damasco…

No entanto, mesmo nestas condições, Rússia e Estados Unidos parecem estar a conseguir conter, nestes primeiros dias, os principais grupos beligerantes, por forma a que se possa afirmar que “globalmente, o cessar-fogo é observado”.

Todos cansados da guerra?

Começada em 2011 na sequência de protestos da oposição contra o regime, duramente reprimidos por Assad, a guerra civil rapidamente se transformou num conflito entre as principais potências regionais, ao mesmo tempo que grupos terroristas aproveitavam para alargar a sua base de apoio e o Estado Islâmico se implantava em vastas zonas do território. De caminho, os curdos reforçavam a luta pela independência, consolidando uma faixa ao longo da fronteira com a Turquia…

Embora no fundamental não se trate de um conflito religioso, mas sim geopolítico, por ele também perpassa a velha rivalidade intra-islâmica entre xiitas e sunitas, o que só acrescenta rancor e ódio ancestrais ao embate.

Resultado de cinco anos de combates – 250.000 mil mortos, inúmeras vilas e cidades arrasadas e um país completamente dilacerado, com cerca de metade da população em fuga: onze milhões de pessoas deslocadas, quatro dos quais transformados em refugiados, muitos deles acabando por engrossar o fluxo migratório rumo ao velho continente, onde a crise abala agora os próprios fundamentos da União Europeia.

Até finais do ano passado, a sorte das armas inclinava-se para os EUA e seus aliados na região, com o regime de Assad perdendo terreno e cada vez mais debilitado. Mas a intervenção militar da Rússia, a partir de Novembro, virou o jogo, reforçando a posição de Damasco, cujas forças, com apoio da força aérea russa, passaram à contra-ofensiva, recuperando uma série de localidades.

Chegou-se assim praticamente a um impasse do qual só se pode sair ou por intensificação da guerra, com mais destruição e morte e mais gente em fuga, ou por negociação.

Arábia Saudita, Turquia, Emirados e Qatar chegaram a admitir a possibilidade de colocarem tropas no terreno, mas a Rússia advertiu de imediato que isso “poderia conduzir a nova guerra mundial” (intervenção do primeiro ministro Medvedev na Conferência de Munique).

Obama, que desde o início não quis envolver diretamente os EUA em mais um conflito armado no Médio Oriente, de desfecho incerto, preferirá certamente, agora que está em fim de mandato, uma solução negociada. Nesse possível entendimento (que, reduzindo o fluxo de refugiados satisfará et pour cause! a Europa), Pútin, por seu turno, verá a forma de sair do isolamento diplomático a que tem sido votado desde a (re)anexação da Crimeia, em 2014. Com a vantagem de negociar com uma administração que já conhece, em vez de ter de enfrentar as incertezas de uma nova presidência americana, seja ela republicana ou democrata.

Neste contexto, apesar de toda a fragilidade que o envolve, o cessar-fogo na Síria pode durar mais do que se pensa e abrir caminho, dia 7 de Março em Genebra, a negociações com vista a uma solução política do conflito.

Não será ainda o fim da guerra (a luta contra o Estado islâmico e a Al-Nusra irá continuar); pela frente haverá provavelmente impasses e até algum retomar aberto ou velado de hostilidades. Mas nunca como hoje a possibilidade de ao menos diminuir a intensidade  dos combates foi tão grande, infundindo a esperança de que se possa ao menos encetar o caminho que acabará por conduzir à paz.

 

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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