Sem turistas e quase sem moradores, Alfama enche-se de saudade dos arraiais

Mundo Lusíada
Com Lusa

Despido da tradicional folia, sem turistas e com os poucos moradores que resistiram aos despejos, o bairro lisboeta de Alfama vive hoje dias de saudade. O cancelamento dos arraiais e das marchas, devido à pandemia, transformou-se num “silêncio magoado”.

“É muito triste, a gente tinha sempre muita gente. Era um bairro, nesta altura do Santo António, em que estava tudo enfeitado, era uma alegria, mas agora parte das pessoas também já não moram cá, umas morreram, outras foram despejadas”, conta Maria Helena Dias, de 84 anos, à porta de casa.

Perante a “desgraça” da pandemia da covid-19, a alfacinha apoia o cancelamento das Festas de Lisboa, inclusive arraiais e marchas populares. “Se Deus quiser, para o ano, havemos de estar cá todos”, perspetiva, sem deixar de apregoar que “Santo António é Alfama”.

“Fechada em seu desencanto/ Alfama cheira a saudade/ Alfama não cheira a fado/ Cheira a povo, a solidão/ Cheira a silêncio magoado/ Sabe a tristeza com pão.” Estes versos, interpretados por Amália Rodrigues, voltam a traçar a atualidade de um dos bairros históricos de Lisboa, precisamente no ano em que se assinala o centenário do nascimento da fadista.

“Devido ao turismo, despejaram as pessoas. Devido ao vírus, os turistas fugiram. Por isso, o bairro está vazio e, claro, as pessoas estão muito tristes, porque nesta altura todas as ruas estavam enfeitadas, toda a gente estava a viver os santos populares”, afirma a presidente da Associação do Património e da População de Alfama (APPA), Maria de Lurdes Pinheiro, em declarações à agência Lusa.

Em pleno mês das Festas de Lisboa, estas ruas estreitas, com becos e travessas, estão quase sem ver passar vivalma. Sem a agitação de pessoas a subir e a descer as escadinhas, numa espécie de labirinto sob orientação do rio Tejo, os poucos vestígios de folia são os enfeites nas varandas, alguns a teimar em sair desde os festejos de outros anos.

“É triste, dá um ar de abandono”, lamenta a presidente da APPA. Apesar de sobressair a tristeza, a situação traz algum contentamento, pelo alívio da enchente de turistas. “Respira-se melhor, não há barulho, porque era horrível”, indica Maria de Lurdes Pinheiro, acrescentando que agora se voltou a ouvir falar português.

A pandemia veio pôr a nu alguns dos problemas em Alfama, onde é preciso um equilíbrio entre turismo e moradores, para “não transformar este bairro num deserto, num bairro quase fantasma”, defende a representante. “Precisamos de ter o comércio tradicional, voltar a ter as mercearias, as tabernas, a frutaria, a peixaria e também pessoas a viver dentro do bairro”, reclama.

Proibidos os arraiais em Lisboa, os moradores vão recordar “como se fazia antigamente” e festejar à porta de casa, reunindo a família à volta de um fogareiro para a sardinhada e a troca do manjerico, adianta Maria de Lurdes Pinheiro, perspetivando que não se registem aglomerados e que os festejos do próximo ano possam ser vividos “com mais qualidade em tudo”.

Há três décadas em Alfama, Judite Gomes, de 62 anos, tem raízes transmontanas, esteve emigrada em Paris, mas foi aqui que encontrou um lar. Conhecida por “a francesa” ou “a morgadinha de Alfama”, alcunha que dá nome aos seus três restaurantes, a comerciante assume que “custa imenso” não ter arraiais.

“Não conheço Alfama assim. Infelizmente, nem moradores, nem festas, não há nada”, conta, lembrando que este era “um mês cheio de vida e de alegria”, com a visita de turistas nacionais e estrangeiros.

Compreendendo a decisão de proibir os festejos, a comerciante alerta que é impossível “sobreviver sem pessoas”. Apesar de ter aberto as portas dos seus restaurantes há duas semanas, após meses de confinamento, os clientes tardam em chegar, enquanto os gastos de funcionamento se vão somando, inclusive luz e água.

“Que sejamos todos unidos, que consigamos chegar ao ano que vem e que façamos uma festa a dobrar”, realça Judite, mostrando-se preparada para lutar contra o impacto da pandemia: “Tudo o que desejo é que não fique doente com este vírus.”

À entrada do bairro, no miradouro das Portas do Sol, é visível a falta de turistas, com o elétrico 28 a circular vazio e as esplanadas desafogadas. Entre os comerciantes, há quem aproveite para dizer que não faz falta o “turismo de autoclismo”, que era descarregado nos pontos icônicos de Lisboa e descia em direção ao rio, sem acrescentar valor.

Sob o tema “Assim Deus quis”, Alfama conquistou o 2.º lugar no concurso das marchas populares de Lisboa de 2019. Com os arcos alusivos às varinas e pescadores a serem aproveitados para decorar o bairro, a marcha de Alfama espera pelo próximo ano para voltar à rua. No Centro Cultural Dr. Magalhães Lima, coletividade que organiza a marcha, o salão está carregado de boas memórias, a que se junta hoje a saudade.

“É uma tristeza não haver marcha, é uma tristeza muito grande, muito triste, a gente está habituada, isto é uma folia, só visto”, enaltece Maria Helena Dias, que vive em frente à coletividade, recorda que marchou pela primeira vez em 1955, participando desde os 14 até aos 60 anos.

Para o figurinista e cenógrafo da marcha de Alfama, Nuno Lopes, o cancelamento do concurso “é um marco que vai ser difícil de digerir, pelo menos no mês de junho”, mas a ideia de celebrar o Santo António fora de época “não faz sentido nenhum”.

Com o trabalho guardado na gaveta, destaca-se a vontade de marchar, que virá “em dobro para o ano seguinte”, prevê Nuno Lopes, referindo que este ano “não há qualquer tipo de possibilidade de fazer nada físico, infelizmente”.

Se não fosse a organização de anos de trabalho, faltavam marchantes em Alfama, em consequência do despejo de moradores: ”Olhamos para a marcha e dizemos assim ‘quantos moram cá agora? Dez por cento’, já ninguém mora aqui”, reconhece.

Filha do bairro, Carina Rocha, de 37 anos, cresceu no meio da marcha, tanto que participa como marchante “há 20 anos, desde 1999”.

“Estamos muito tristes com este cancelamento, mas todos temos consciência de que esta era a decisão mais certa”, sustenta.

Marchas canceladas

Em declarações à agência Lusa, o presidente do Grupo Desportivo da Mouraria, Pedro Santos, admitiu que as pessoas se sentem tristes por não haver marchas e arraiais em 2020.

“A marcha popular da Mouraria sai para desfilar desde 1934, é muito tempo. É das primeiras marchas de Lisboa. As pessoas sentem-se um bocado tristes por não haver as marchas, não haver os arraiais, mas, pronto, temos de estar todos juntos”, referiu.

De acordo com o dirigente, apesar de não haver desfile, a coletividade está a preparar uma pequena surpresa no bairro, no dia em que marcharia na Avenida da Liberdade.

“Em princípio, se correr tudo bem, no dia 12 fazemos uma pequena brincadeira com os músicos da marcha, mas é uma coisa muito residual. Vai ser só uma marcação de posição, a saída do Santo António e mais nada. Não há desfile, não há nada. É só uma brincadeira com os músicos que será transmitida pelo Facebook e pelo Instagram”, adiantou.

Também os responsáveis pela marcha da Madragoa estão a ponderar em organizar “uma coisa mais familiar” no bairro.

“Estamos a tratar de toda a logística, porque sabemos de todas as medidas de segurança que têm de ser tomadas. A nossa ideia era fazer uma volta ao bairro. Cada um vestia uma farda dos anos anteriores e dávamos a volta ao bairro, uma coisa simbólica”, realçou Mariana Peres, da comissão organizadora da marcha da Madragoa.

Segundo a representante, o Esperança Atlético Clube está a tentar juntar os marchantes para não “deixar passar a data [12 de junho] em vão”. Todo o trabalho “ficou em ‘standby’” por causa do cancelamento das marchas.

“O sentimento não é feliz para nós que vivemos no bairro”, sublinhou.

Por seu turno, o presidente do Ginásio Alto do Pina, Pedro Jesus, disse que não está a pensar realizar eventos alternativos às marchas populares, por causa da posição da Câmara Municipal da Lisboa, que proibiu os eventos com grandes aglomerações de pessoas durante o mês de junho.

“Uma vez que a câmara municipal mantém a sua posição de não haver qualquer tipo de eventos no mês de junho, a marcha do Alto do Pina é solidária com a posição. Não, não estamos a pensar”, referiu.

O presidente da Associação de Coletividades do Concelho de Lisboa (ACCL), Pedro Franco, disse à Lusa que não “há alternativas” às marchas populares e que é “muito perigoso” abrir as coletividades durante as Festas de Lisboa.

“Algumas poderão abrir para fazer umas pequenas festas, um bocado à revelia, porque enquanto não houver uma ordem da Direção-Geral da Saúde ou do Governo as coletividades não podem abrir e arriscam denúncias”, referiu.

De acordo com Pedro Franco, as coletividades já foram avisadas para que não façam arraiais. “Nós estamos a dizer às coletividades para não fazerem nada. As que abrirem, a responsabilidade será delas. Elas estão avisadas para que isto não aconteça”, esclareceu.

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