Por Carlos Fino
A detenção, o ano passado, durante nove meses, do ex-primeiro ministro de Portugal, José Sócrates, alvo de diversos processos ainda em andamento, e agora a “condução coercitiva” de que foi objeto o ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, suscitaram críticas nos meios jurídicos, políticos e mediáticos de um e outro país, questionando a legitimidade dos métodos utilizados pelo poder judiciário.
No caso de Sócrates, e sem querer obviamente entrar no mérito das causas, é difícil entender que o Estado, ao cabo de um ano de investigações e longos meses de detenção, não tenha ainda conseguido formalizar as acusações, ao mesmo tempo que uma série de “revelações” aparentemente dirigidas foram apresentando suspeitas como factos confirmados, numa condenação prévia sem julgamento no tribunal da opinião pública.
O próprio acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que permitiu aos advogados de Sócrates acederem, por fim, a todo o processo em que o ex-primeiro ministro é arguido continha duras críticas não apenas aos investigadores liderados pelo procurador, mas também ao juiz de instrução criminal, que viabilizou por demasiado tempo os pedidos do Ministério Público destinados a manter o caso em segredo de justiça, prejudicando assim as garantias de defesa do arguido.
Quanto a Lula, é manifesto que a “condução coercitiva” a que foi submetido pecou por não ter tido a precedê-la qualquer intimação prévia, cujo eventual não cumprimento a justificaria. O juiz do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, que está longe de ser um simpatizante do PT, foi contundente:
“Condução coercitiva? O que é isso? Eu não compreendi. Só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado… Nós, magistrados – acentuou – não somos legisladores, não somos justiceiros… Não se avança atropelando regras básicas.”
Acresce, num e noutro caso, a par da espectacularização das acções de busca e detenção empreendidas, uma aparente colaboração das autoridades judiciárias e/ou policiais com parte dos media, a que são facultados dados escolhidos considerados oportunos, por forma a criar um clima público favorável às investigações e contribuindo dessa forma para desmoralizar os investigados.
Hoje, como nos anos 90 em Itália, durante a Operação Mãos Limpas, é uma geração de magistrados mais jovens, sem particular deferência para com os políticos, bem pelo contrário, que avança no desmantelar dos esquemas de ligações espúrias entre os poderes do Estado e o mundo empresarial.
Para isso, recorrendo aos media, usam como arma a deslegitimização dos líderes comprometidos por forma a estimular as investigações.
Como reconhecia, já em 2004, numa lúcida análise sobre a experiência italiana, o juiz brasileiro Sérgio Moro, hoje responsável pela Lava Jato, “as prisões, confissões e publicidade (sublinhado meu) conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite.”
Há quem levante, como vimos, sérias objecções a estes métodos, que correm o risco de ferir direitos essenciais. Na realidade, em cada um desses processos, um grupo restrito de magistrados tem em cada momento nas mãos a possibilidade de destruir antecipadamente reputações, por vezes de forma irreversível.
O que se pode contrapor a isso é que os interesses visados são tão fortes – envolvendo crime organizado e titulares do poder político com amplos poderes – que sem envolver a opinião pública se torna difícil, se não impossível, combatê-los.
Mas ao proceder assim, o judiciário, que tem de permanecer rigorosamente acima das facções, corre o risco de se deixar envolver e instrumentalizar na luta política, como se fora um mero agente de um grupo contra outro.
Daí a absoluta necessidade das autoridades judiciais se distanciarem dos partidos e manterem completa isenção na escolha e tratamento dos poderosos investigados, sejam de que partido forem. Até para retirarem legitimidade às previsíveis tentativas de transferir para o campo da política aquilo que pertence à área da justiça.
Mais do que uma república dos juízes, precisamos, portanto, de um democracia plena, em que sejam plenamente respeitados os direitos de todos.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.