Chegou o momento de repensarmos o Supremo, tanto sob a óptica da escolha de seus ilustres membros, quanto sob o prisma de sua verdadeira função.
Muitos têm uma mística admiração pelo símbolo da Justiça, que seria o Supremo Tribunal Federal. Eu mesmo o tinha, desde que, em 1962, proferi a primeira sustentação oral, ainda jovem advogado, naquela Casa, em Brasília. E esta admiração sempre permaneceu com relação àqueles que por lá passaram, mantendo-a, também, aos ínclitos juristas que a compõem no momento.
Sempre entendi que a função do STF, assim como a do STJ e do TST, é menos fazer Justiça e mais preservar as instituições. Em outras palavras, justiça se faz nas duas instâncias inferiores, perante o juízo monocrático e perante o órgão de 2º grau, colegiado encarregado da revisão da decisão, mediante o oferecimento do recurso cabível.
A função dos Tribunais Superiores é de preservar as instituições jurídicas e o Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual, nesta pessoal concepção, apenas as causas que transcendam o interesse das partes ou que impliquem manifesta violação da lei, da Constituição ou da jurisprudência consolidada, é que deveriam subir para essas Cortes.
Fosse sua função a de administrar justiça, como ocorre com as instâncias inferiores, em que o duplo grau de jurisdição é garantia constitucional, e teríamos uma multiplicação infinita de instâncias, visto que há ainda outros tipos de recursos regimentais no âmbito dos próprios Tribunais, para as seções ou para o plenário.
Dir-se-á que é o que ocorre, hoje, mas tal ocorre por excesso de instâncias, algumas superpostas, o que transformam, em realidade, os Tribunais Superiores em terceira e quarta instâncias de administração da Justiça e não apenas naquelas voltadas à preservação do Direito e das Instituições.
Não bastasse tal deturpação, sustentam alguns juristas que vivemos a era do neoconstitucionalismo, que comportaria uma visão mais abrangente de judicialização da política, dando ensejo ao ativismo judicial. Tem-se, pois, duas posturas julgadoras drasticamente opostas: a dos magistrados de antanho, que nunca legislavam, e a dos atuais, que legislam.
A partir de 2003, com os presidentes do PT, chegaram à Suprema Corte inúmeros ministros, hoje, oito magistrados por eles indicados. À evidência, por melhor que sejam estes juízes, não foram eleitos pelo povo, não passaram pelo teste da representação popular, não se tornaram “ouvidores” da vontade da sociedade. Não têm qualificação política, mas exclusivamente técnica, não podendo auscultar os desejos da comunidade como os seus efetivos representantes (deputados, senadores, vereadores).
Por esta razão, o Supremo sempre foi uma Corte de legisladores negativos, ou seja, voltada a não dar curso às leis inconstitucionais, respeitando os poderes políticos em sua função legislativa. De resto, foi o que ficou definido no § 2º, do artigo 103, da Lei Suprema, tanto que, nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, quando o Congresso se omite inconstitucionalmente, não pode a Suprema Corte legislar, mas apenas comunicar o Poder Legislativo de sua emissão, sem impor prazo e sem sanção (§ 2º do art. 103 da CF/88).
O fato é que qualquer novo integrante da Supremo Corte adaptava-se, no passado, rapidamente ao espírito próprio do Colegiado prestigiando sua jurisprudência. Dizia-se, então, como referi-me inicialmente, que a Justiça fazia-se nas instâncias inferiores, cabendo ao Pretório Excelso dar estabilidades às instituições.
A rápida mudança, todavia, de sua composição, de um lado, e de outro, a introdução da TV Justiça, que permitiu o acesso às discussões nos Tribunais a círculos não jurídicos, tornou o STF um protagonista além das suas próprias fronteiras, passando de legislador negativo para positivo.
Neste sentido o Supremo Tribunal Federal, nos dias atuais, diferentemente do Pretório Excelso de mais de uma centena de anos, decidiu tornar-se legislador positivo. Não respeitou o princípio do artigo 81 da CF, quando, em vez de impor novas eleições em face de governadores e vice afastados, deu o cargo a candidatos derrotados. Feriu a vontade constituinte ao impor além de outras intervenções normativas de menor impacto, em relação à fidelidade partidária, quando os constituintes relegaram aos partidos políticos sua adoção ou não (artigo 17 § 1º). Criou uma terceira hipótese de impunibilidade nos casos de aborto, o eugênico (anencéfalos), quando o Código Penal só admite, pelo artigo 128, o terapêutico ou o sentimental. Acrescentou uma segunda hipótese de união estável, não constante da Lei Maior, entre pessoas do mesmo sexo (226, § 3º). Revogou dispositivo constitucional, ao decidir não ser necessário o trânsito em julgado para que alguém seja considerado culpado (art. 5º, inc. LVII da Lei Suprema). Interferiu nas funções sancionatórias do Congresso Nacional ao afastar deputado de suas funções, algo vedado pelo artigo 53, §3º da CF/88.
O protagonismo maior, todavia, deu-se ao impor um regime jurídico diferente do adotado pelo Congresso, no concernente ao “impeachment”. Collor, admitido o processo de “impeachment”, foi afastado em 48 horas e Itamar passou a governar, de imediato, o país. Ao determinar que o Senado deveria, primeiro, julgar a Câmara, para ver se decidira corretamente, para, depois, julgar o Presidente, tornou o país acéfalo desde o dia 17/04 até 12/05, período em que Dilma perdeu toda a capacidade de presidir e Michel Temer não pôde assumir o governo. O Brasil vive, ainda, incertezas e ficou ingovernável por quase um mês, exclusivamente por força da decisão do Pretório Excelso, que possui esplêndidos juristas, mas não tem – nem deve ter – qualquer vocação política.
Por esta razão, é que os constituintes, sabiamente, exigiram a independência e autonomia entre os Poderes da República. Como velho advogado e professor de direito constitucional, tenho receio desses avanços de um poder técnico sobre um poder político, principalmente quando a própria Constituição o impede.
Tenho para mim, com o respeito devido a Suas Excelências, que, nos últimos tempos, por terem tantas vezes legislado, o Tribunal corre o risco de o Congresso aplicar-lhe o inciso XI do art, 49 da CF, o que poderia provocar indiscutível fragilização do regime democrático no país.
À guisa, pois, de sugestão para uma reforma do Judiciário é essencial colocar claramente na Constituição que o Poder Judiciário é um poder técnico, e não político, não lhe cabendo nunca ser legislador positivo, substituir o Parlamento, nem legislar nas omissões, por entender que o Congresso está demorando muito para produzir determinada norma.
Sendo um poder técnico, não é razoável que não haja parâmetros para a escolha dos ministros que o compõem, senão a vontade exclusiva do Presidente, que livremente define quem serão seus integrantes. Nada obstante reconhecer o mérito e o valor dos 11 ministros da Suprema Corte, é certo que há sempre o risco potencial de uma escolha mais política que técnica.
Nesta esteira, a escolha dos ministros para integrar a Suprema Corte deveria recair sobre pessoas de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicadas pelas diversas entidades representativas dos operadores do Direito. O conhecimento jurídico deveria ser não só notório (reconhecimento da comunidade), mas notável (conhecimento indiscutível).
Pela minha sugestão, o Conselho Federal da OAB indicaria o nome de 6 consagrados juristas, o Ministério Público outros seis e os Tribunais Superiores mais 6 (2 STF, 2 STJ e 2 TST), com o que o Presidente da República receberia uma lista de 18 ilustres nomes do direito brasileiro para escolher um. Todas as três instituições participariam, portanto, da indicação.
O Presidente, por outro lado, entre 18 nomes, escolheria aquele que, no seu entender, pudesse servir melhor ao País. Por fim, o Senado Federal examinaria o candidato, não apenas protocolarmente, mas em maior profundidade, por Comissão Especial, integrada por senadores que possuíssem a melhor formação jurídica entre seus pares. Por outro lado, manter-se-ia o denominado “quinto constitucional”, ou seja, 3 dos 11 Ministros viriam da advocacia e do Ministério Público, com alternância do preenchimento das vagas: ora haveria 2 membros do MP e um da advocacia, ora 2 ministros vindos da Advocacia e um do Ministério Público.
De qualquer forma, para as vagas dos 11 ministros, as 3 instituições (Judiciário, Advocacia e o parquet) elaborariam suas listas sêxtuplas.
Acredito que este modelo ensejaria uma escolha mais técnica, com a participação do Legislativo, do Executivo, do Poder Judiciário, do MP e da Advocacia. Dessa forma, teríamos uma Suprema Corte composta por ministros escolhidas de forma democrática, preservando-se sempre a independência dos Poderes, com autonomia assegurada para suas funções (artigo 2º da Constituição Federal).
Penso, pois, que chegou o momento de repensarmos o Supremo, tanto sob a óptica da escolha de seus ilustres membros, quanto sob o prisma de sua verdadeira função.
Dr. Ives Gandra Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Serra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU – [email protected] e escreve quinzenalmente para o Jornal Mundo Lusíada.