Por Carlos Fino
A morte do menino sírio Aylan, que deu à costa numa praia da Turquia depois do barco em que viajava ter naufragado, comoveu o mundo, operou uma viragem no posicionamento de muitos líderes europeus e sobretudo gerou um movimento de solidariedade nas redes sociais que promete resgatar a honra perdida do velho continente.
À ignomínia do arame farpado, dos cães e das cargas policiais, dos números inscritos nos braços a marcador, do sofrimento imposto nas fronteiras da Sérvia, da Grécia e da Hungria; ao desprezo pelas obrigações internacionais que decorrem dos tratados e convenções que os países da Europa subscreveram; à vergonha das declarações do primeiro ministro britânico David Cameron, comparando os migrantes a uma “praga”, sucede-se agora uma onda de simpatia por esses condenados da terra, acolhidos com aplausos, água e brinquedos à chegada à Alemanha, cuja chanceler Angela Merkel, depois de semanas de hesitação, já havia declarado estar disponível para acolher até 800 000 refugiados vindos da Síria.
Berlim parece ter compreendido, melhor e mais cedo que as outras capitais europeias, que os refugiados, longe de serem apenas um problema, podem ser um activo – embaratecimento da força trabalho, reforço do sistema de segurança social e estímulo ao crescimento demográfico.
Na Islândia, depois que uma jovem escritora endereçou uma carta aberta ao governo, pelo menos 10.000 pessoas – 4% da população – ofereceram as suas casas para acolher refugiados; na Finlândia, o próprio presidente colocou a moradia à disposição, num gesto destinado a incentivar a generosidade do resto do país e em Espanha, Madrid e Barcelona declararam-se cidades-refúgio, dando as boas-vindas aos imigrantes. Ontem, domingo, o próprio Papa apelou às organizações católicas de toda a Europa para acolherem refugiados.
Tudo isto, porém, não apaga, antes acentua, o sentimento de indiferença e incapacidade que decorre das declarações oficiais da UE, cujos líderes, no auge da crise, marcaram uma reunião “urgente” para daí a 15 dias, ou seja, apenas para 14 de Setembro!
No seu conjunto, as instituições europeias – Conselho, Comissão e Parlamento – destituídas de um mínimo sentido de solidariedade e urgência à altura da tragédia de proporções bíblicas a que vimos assistindo, mostraram-se totalmente impreparadas para fazer face ao problema, não gerando até agora qualquer política de consenso minimamente coerente.
Depois do escândalo dos naufrágios no Mediterrâneo, que já ceifaram dezenas de milhar de vidas, a muito custo, a UE tinha acordado receber este ano até 40.000 refugiados – número bastante reduzido face às necessidades, mas que mesmo assim se mostrava difícil de cumprir porque vários países levantavam objecções às quotas que lhes haviam sido destinadas.
Agora, face ao súbito avolumar do problema, e à crescente indignação da opinião pública, que se acentuou depois da foto do menino sírio morto, a Comissão fala de uma meta de 120.000, três vezes mais do que o limite que a UE a si própria se havia imposto.
Mais uma vez, os europeus parecem correr atrás do prejuízo – o Alto Comissariado da ONU para os refugiados já pediu que a UE abra espaço para pelo pelos 200.000 pessoas.
Tudo indica, portanto, que as decisões europeias vão ser too little, too late – muito pouco, demasiado tarde. Depois de ser compelida a abrir caminho aos refugiados, a Hungria fala já de novo em fechar as fronteiras e prossegue na construção de um muro de 175 kms e 4 metros de altura na fronteira com a Sérvia.
Por outro lado, longe de se questionar sobre as razões profundas da crise – a miséria extrema em que vivem milhões de pessoas e as guerras e intervenções militares no Médio Oriente, algumas das quais ela própria promoveu ou de que foi cúmplice – a UE mostra tendência para se concentrar apenas nas consequências, como a repressão ao tráfico de seres humanos que a onda migratória suscita. Ou seja, procura, quando muito, mitigar efeitos, em vez de tentar resolver problemas.
Fica assim a dúvida: será a corrente de solidariedade suscitada pela foto do menino morto suficiente para resgatar a honra perdida da Europa?
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012).