Que Deus tenha piedade da Igreja

Em pleno carnaval, no decorrer de um Consistório, onde as autoridades presentes pensavam ter sido chamadas para tratar de três novas canonizações, o Papa Bento XVI surpreendeu a todos e apresentou sua carta de renúncia, que se concretizará no dia 28 as 20h deste histórico mês de fevereiro de 2013.

No documento, tornado público pelo Vaticano ao abrirem-se as portas do encontro, entre outras coisas afirmou que “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino. […] é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005”. E convocou os 117 participantes para o Conclave, para a eleição do novo Sumo Pontífice. Foi, indubitavelmente, uma notícia bombástica. Afinal, há muitas gerações, um papa sai do trono somente quando morre. E, ao longo da caminhada do cristianismo, apenas quatro papas abriram mão do cargo. O mais recente a ter tomado tal decisão foi Gregório XII, durante o século XV. Ou seja, não há como se negar o fato extraordinário e, acima de tudo, preocupante.

De imediato, o ato de Bento XVI foi valorizado pela Igreja e por diversas autoridades diplomáticas internacionais como demonstração de coragem, de grandeza e desapego. Prova de humildade e consciência das limitações físicas que, vinte e quatro horas depois, foram ainda destacadas pela divulgação da notícia do uso de um marca-passo, cujas baterias há três meses foram substituídas numa pequena cirurgia. O aparelho foi instalado antes de sua eleição. E, dois dias após o anuncio, na abertura da Quaresma, Bento XVI apareceu pela primeira vez em público, sendo ovacionado por cerca de 10 mil pessoas. E ele, emocionado, reafirmou “foi uma decisão pelo bem da Igreja”. Mas, em que pese todas estas respeitosas manifestações, há, inquestionavelmente, um mal estar pairando.

Não escapa à memória de boa parcela da humanidade como o seu antecessor, João Paulo II, o terceiro papa em longevidade no posto carregou à vista de todos, há menos de uma década, os efeitos de ter sido baleado em 1981, ter caído e quebrado o ombro em 93 e, meses depois, o fêmur, além de sofrer de Parkinson por longos anos. Na base do sacrifício foi até o fim cumprindo o seu papel. Assim, não é cabível apenas pousar as razões de tamanha decisão pelo viés médico, numa aparente soma de artrites e problemas cardíacos que acometem um idoso. Então, passam a saltar outros vários pontos que envolvem as questões políticas e econômicas do Vaticano como centrais no ato do alemão Bento XVI.

Joseph Ratzinger é um dos maiores teólogos vivos do cristianismo. Um intelectual de mão cheia, com viés conservador, fazendo assim uma extensão da linha iniciada pelo seu antecessor polonês, francamente oposto, por exemplo, a ideologia socialista e também crítico da Teologia da Libertação e Comunidades Eclesiais de Base. O então cardeal Ratzinger foi líder da tradicionalista Congregação para Doutrina e Fé durante o papado de João Paulo II. Eram contrários ao que entediam como excesso de liberalização do Concílio Vaticano II, instaurado sob João XXIII. Um discurso que abraçava especialmente a causa dos povos mais pobres, caso latino-americano. Em oposição, exerceria, assim, uma visão mais ‘europeizante’ de cristianismo, menos sintonizada com o quotidiano das populações do terceiro-mundo, no caso inúmeras ex-colônias dos imperialistas do ‘Velho Mundo’. Esta posição de menor ênfase nas demandas sociais teria dificultado a ampliação de novos quadros pastorais, ao mesmo tempo em que o catolicismo passou a sofrer fortes ataques de outros grupos religiosos, como dos evangélicos neopentecostais, extremamente agressivos em seus discursos, utilizando-se muito bem do poder da mídia televisiva e radiofônica, conquistando 390 milhões de novos adeptos em cinco anos. Outro em avanço é o Islã. O numero de muçulmanos foi praticamente o dobro de novos católicos em seu pontificado, expansão principalmente em África e Ásia, entre 2005 e 10. Os católicos giram em torno de 17%. E somam-se a estes elementos de crise a questão dos escândalos dentro da máquina do Vaticano.

Corrupção em contratos internos e polêmicos lances contábeis bancários não condizentes com uma entidade religiosa, como ficou exposto pelos roubos dos documentos feitos pelo próprio mordomo do papa – que demonstra crer que ele não agiu sozinho – sujam a imagem da poderosa entidade e apontam para uma perda de controle nos últimos tempos. Afinal, é uma monarquia absolutista. E também, para não avançar por outros aspectos mais, há os polêmicos casos da proibição ao uso da camisinha como contraceptivo e prevenção da aids, a rejeição aos gays, o casamento dos padres, o sacerdócio feminino e o deplorável episódio da pedofilia, escancarado recentemente durante seu mandato. Muitos desgastes. E aqui, o custo moral une-se aos financeiros, já balançados pelos impactos do problema ‘capitalista’ global. Calcula-se que os processos e indenizações, só nos EUA, chegaram a três bilhões de dólares em mais de três mil denuncias abertas, com 3.700 clérigos acusados. Assustador. Que pensa Cristo disto tudo?

Grande mente, todavia, isolado, restou, enfim, ao aborrecido Pontífice um lance extremo, já que suas articulações não estariam surtindo o efeito desejado: corajosamente sacrificar seu mandato na esperança do aparecimento de uma nova liderança que consiga urgentemente purgar e unir os grupos em torno do Trono de São Pedro, às vésperas da sagrada Páscoa. Segundo Bento XVI, é preciso ir contra o individualismo, a hipocrisia e as disputas internas que ‘desfiguram o rosto’ da instituição. Que Deus tenha misericórdia da Igreja. São Paulo, 14 de fevereiro de 2013.

 

Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.

1 comentário em “Que Deus tenha piedade da Igreja”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *