Presidente português lamenta espera de quatro anos na entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque

Músico e escritor brasileiro, Chico Buarque recebe prêmio Camões no Palácio de Queluz, 24 Abril, Sintra, Portugal. ANTONIO COTRIM/LUSA

Da Redação com Lusa

O Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou a espera de quatro anos para a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque, referindo que alguns “não gostaram” da sua atribuição.

“Meu caro amigo, me perdoe, por favor, essa demora”, disse Marcelo Rebelo de Sousa, dirigindo-se ao compositor, cantor e escritor brasileiro, citando versos de uma canção sua.

O chefe de Estado português discursava na cerimônia de entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque, no Palácio de Queluz, em Sintra, na presença do Presidente do Brasil, Lula da Silva, e do primeiro-ministro português, António Costa.

“Saudando a decisão do júri do Prêmio Camões e as razões da sua decisão, suspeito que por uma vez ninguém precisaria da fundamentação dessa decisão, de tal forma ela se impõe como evidência, acima de tudo poética, mas também romanesca”, considerou Marcelo Rebelo de Sousa.

A entrega do Prêmio Camões de 2019 a Chico Buarque aconteceu simbolicamente na véspera da Revolução dos Cravos em Portugal e quatro anos depois de a sua atribuição ter sido anunciada, em 21 de maio de 2019.

“Dir-se-á que quatro anos é uma longa espera para concretizar, não importa chorar por leite derramado, o prêmio respeita a 2019, é entregue pessoalmente em 2023, mas ninguém cuidará de saber a que ano diz respeito. Diz respeito a todos os anos”, sustentou Marcelo Rebelo de Sousa.

Segundo o Presidente português, a espera para entregar este prêmio a Chico Buarque foi “como os admiradores esperam por aqueles que admiram, como os amigos esperam uns pelos outros”.

No início do seu discurso, Marcelo Rebelo de Sousa lembrou que no Palácio de Queluz nasceu e morreu, no mesmo quarto, “o filho que rompeu com o pai para abraçar uma nova pátria”, D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal.

“Que tempo e lugar para reviver e refazer a história”, observou o chefe de Estado, congratulando-se pelo “encontro entre Brasil e Portugal em democracia” neste dia 24 de Abril.

Mencionando que se diz do português que “é a língua de Camões”, perguntou: “A que português ou lusófono faria impressão usar como equivalente de a língua de Camões o termo a língua de Chico Buarque, tendo em conta a altura, a emoção, a ductilidade, a imaginação a que ele levou o português cantado por si e por tantos?”.

Marcelo Rebelo de Sousa comparou o Prêmio Camões de Chico Buarque ao Nobel da Literatura atribuído a Bob Dylan, mas salientou que a obra do músico norte-americano “é constituída quase exclusivamente por canções”, enquanto Chico Buarque é autor de vários romances.

Sobre os que “em diversas instâncias não gostaram do Camões atribuído a Chico”, que não nomeou, o chefe de Estado assinalou que “se dispensaram do absurdo de alegar deméritos estéticos, contestando em vez disso as ideias e as opiniões do cidadão Francisco Buarque de Hollanda – que a elas tem inteiramente direito, que por elas deu a cara tanto em liberdade como em ditadura”.

No fim da sua intervenção, o Presidente português tentou usar o “português brasileiro” para recitar alguns versos da canção de Chico Buarque “Meu caro amigo”, de 1976, uma “carta cantada” para Augusto Boal, então exilado em Lisboa: “Meu caro amigo, me perdoe, por favor / Se eu não lhe faço uma visita / Mas como agora apareceu um portador / Mando notícias nessa fita”.

“De Chico Buarque recebemos regulares notícias, desde meados dos anos 60. Primeiro notícias gravadas, mais tarde também em livro. E agora que nos faz uma visita, quero dizer-lhe em português de Portugal: Meu caro amigo, me perdoe, por favor, essa demora”, concluiu Marcelo Rebelo de Sousa.

O Prêmio Camões de literatura em língua portuguesa foi instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, com o objetivo de distinguir um autor “cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento do patrimônio literário e cultural da língua comum”.

Francisco Buarque de Hollanda, nascido em 19 de junho de 1944 no Rio de Janeiro, compôs centenas de canções, cerca de 500, e gravou perto de 40 álbuns, em 58 anos de carreira. A sua primeira composição gravada foi “Marcha para um dia de sol”, em 1964, e a mais recente “Que tal um samba”, em 2022.

O seu primeiro romance, “Estorvo”, foi publicado em 1991, a que se seguiram “Benjamim”, “Budapeste”, “Leite Derramado”, “O irmão alemão” e “Essa gente”. O seu livro mais recente é “Anos de chumbo e outros contos”, publicado em 2021.

Autores “humilhados e ofendidos”

Chico Buarque dedicou hoje o Prêmio Camões a “tantos autores humilhados e ofendidos” nos “anos de estupidez e obscurantismo”, lembrando que “a ameaça fascista persiste no Brasil e um pouco por toda a parte”.

No discurso de agradecimento, emocionado, Chico Buarque lembrou o pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, de quem disse ter herdado “alguns livros e o amor pela língua portuguesa”, e que contribuiu para a sua formação política, de esquerda.

Recuando ainda mais na árvore genealógica, o músico e escritor disse que tem nas veias “sangue do açoitado e do açoitador” e antepassados judeus sefarditas, pelos quais disse que “um dia talvez alcance o direito à cidadania portuguesa”.

“Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência”, disse, mas reconheceu que “tem uma porta entreaberta” em Portugal.

Chico Buarque dedicou o galardão “a tantos autores humilhados e ofendidos, nestes anos de estupidez e obscurantismo”.

Na cerimónia de hoje, o presidente do júri do Prémio Camões, o acadêmico Manuel Frias Martins, afirmou que o universo criativo de Chico Buarque “tem sempre uma espécie de reserva de energia para recordar mágoas e equívocos das relações humanas e contrariar a violência, a injustiça e o medo”.

“Que a nossa decisão [do Prémio Camões] sirva para reforçar a união de todas as nações que se entendem em língua portuguesa”, disse, agradecendo ao autor.

A cerimônia chegou a estar marcada para abril de 2020, mas a pandemia da covid-19 obrigou a um adiamento de entrega do prêmio, remarcada para hoje, coincidindo com as celebrações do 25 de Abril e com a visita de Estado, de cinco dias, do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, a Portugal.

Na entrega do prêmio estiveram os escritores Mia Couto e Manuel Alegre — ambos Prêmio Camões -, a presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Rio, a cantora Carminho, a realizadora Teresa Villaverde, o coronel Vasco Lourenço, e o ex-ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, entre dezenas de convidados da área da cultura.

Depois de Chico Buarque, já foram distinguidos com o Prémio Camões o professor e ensaísta português Vítor Manuel Aguiar e Silva (2020), a escritora moçambicana Paulina Chiziane (2021) e o escritor brasileiro Silviano Santiago (2022).

Chico Buarque tem este ano quatro concertos marcados em Portugal: nos dias 26 e 27 de maio, na Super Bock Arena — Pavilhão Rosa Mota, no Porto, e nos dias 01 e 02 de junho, no Campo Pequeno, em Lisboa.

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