Portugal – tempo de incerteza em clima de confronto

Por Carlos Fino

Cavaco-Silva-diz-que-portugTal como se esperava, de acordo com a tradição da democracia portuguesa, o Presidente da República Cavaco Silva indigitou a semana passada Passos Coelho, líder do centro-direita (PSD/CDS), no poder há quatro anos e força política mais votada nas eleições legislativas de 4 de Outubro (38,5%), para formar novo executivo.

Mas fê-lo num contexto em que a possibilidade de renovação do mandato do atual  governo se mostra cada vez mais remota.

Tendo perdido a maioria absoluta (28 lugares a menos no Parlamento), a coligação no poder só conseguiria continuar a governar se conseguisse chegar a um entendimento com os socialistas do PS.

Em vez disso, porém, o cenário que se desenha – pela primeira vez desde Abril de 1974 – é o de um entendimento à esquerda, entre socialistas do PS, comunistas do PCP e Bloco de Esquerda, forças que, juntas, têm 50,7% dos votos, e controlam, portanto, a Assembleia da República.

Nestas condições, o chefe de Estado poderia ter evocado os perigos que, no seu entender, uma tal solução encerra e procurado, pela via da conciliação e do diálogo, alguma solução de compromisso. Mostraria assim que estava acima dos seus estritos interesses partidários, enquanto homem do PSD, comportando-se, como é seu dever constitucional, como o presidente de todos os Portugueses.

Em vez disso, Cavaco Silva mostrou-se irritado e até disposto a barrar por completo um governo à esquerda que lhe venha a ser apresentado, criticando nas entrelinhas o PS por não se entender com o PSD e lançando um anátema sobre as forças políticas à esquerda dos socialistas, o que é claramente discricionário e inconstitucional (Bloco e PCP têm, juntos, quase um milhão de votos – 20% do eleitorado).

Aa razões invocadas por Cavaco para esse banimento da vida democrática – o facto dessas forças se manifestarem contra o Euro, criticarem a atual configuração da União Europeia e serem em princípio contra a NATO – só aparentemente têm alguma força argumentativa e mesmo assim só num universo mental imbuído de um espírito de Guerra Fria, completamente ultrapassado.

Basta lembrar que na Europa há hoje forças eurocépticas dentro do próprio Parlamento Europeu e que governos de direita em França chegaram a retirar, durante anos, o país da estrutura militar da Aliança Atlântica. A própria Inglaterra (também com um governo de direita) prepara-se agora para realizar um referendo sobre a continuação ou não do país na União Europeia… Ora nada disso obsta ou tem obstado, como é óbvio, a que as forças políticas que em diferentes países defendem essas posições possam governar.

Muito crispado e com um discurso deslocado, Cavaco Silva acentuou escusadamente o clima de confronto político no país, abrindo, pelos impasses que se antevêem, um perigoso  tempo de incerteza. E quase induzindo ele próprio, pela intransigência e o fecho a soluções políticas legitimamente negociadas, a desconfiança dos mercados que invoca para se opor a um governo de esquerda.

Limitado nas suas capacidades por se encontrar em final de mandato e não poder por isso dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas, Cavaco tem opções limitadas.

Que irá fazer se a esquerda – como está agora obrigada –  conseguir apresentar um programa estruturado, que, sem pôr em causa os compromissos internacionais do país, apresente – nos limites orçamentais existentes – uma outra filosofia de funcionamento, uma alternativa realista à austeridade?

Vetar e manter o governo atual em meras funções de gestão, sem orçamento durante meses, até que o próximo presidente convoque novas eleições? Tentar criar um governo da sua própria iniciativa? Tudo situações geradoras de tensão com o Parlamento e por isso perigosamente instáveis. Tudo pior do que aceitar um governo à esquerda, que teria – mesmo que mais tarde venha a falhar em resultado das suas contradições – pelo menos a virtude de inserir no jogo político  forças que até agora têm sido marginais ao sistema e que por essa via poderiam temporizar ou moderar as suas posições.

MONSTRUOSIDADE

A posição confrontacional de Cavaco não passou despercebida na Europa – onde, hoje, o maior perigo vem das forças populistas e ultraconservadoras –  com vários articulistas a mostrarem-se chocados com o radicalismo do presidente português.

O britânico Telegraph, por exemplo, escreveu:

“O senhor Cavaco Silva está efetivamente usando o seu cargo para impor uma ideologia reacionária no interesse dos credores e da União Monetária Europeia, tendo o notável desplante de o tentar disfarçar como defesa da democracia.”

Trata-se – diz o articulista – de uma atitude perigosa, bastando lembramo-nos do que se passou antes na península ibérica e na América Latina. E conclui:

“Os socialistas da Europa enfrentam um dilema. Estão por fim a despertar para a desagradável realidade de que a união monetária é um empreendimento da direita que perdeu o verniz democrático e mesmo que eles se mantenham dentro arriscam-se a verem-se impedidos de chegar ao poder. Bruxelas criou um monstro”

Na mesma linha, a insuspeita Forbes norte-americana escreveu que “a decisão do presidente português mostra que a UE se está a tornar igual à URSS”, acentuando que não é negando a democracia que se constrói a Europa:

“Aqueles que querem acreditar que a sistemática denegação da democracia nos estados europeus acabará por conduzir à criação de uns Estados Unidos da Europa pacíficos e democráticos estão a enganar-se a si próprios. A negação da democracia não pode gerar democracia. Nem paz. Quando o Euro acabar por falhar – como deverá acontecer – a Europa mergulhará de novo no caos. E quando mais tarde o Euro falhar e mais repressivas se tornarem as instituições que o querem manter, mais desastroso será o seu provável falhanço.

Temos que contrariar esta monstruosidade. Antes que ela nos destrua a todos.”

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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