Por Carlos Fino
Numa evolução inesperada que ninguém previu, duas semanas depois das eleições que deram maioria relativa à coligação de direita no poder (36,8%), a possibilidade de um governo de esquerda tornou-se uma realidade em Portugal.
Por enquanto, é certo, ainda só uma possibilidade – mas que está em cima da mesa com tanta legitimidade e probabilidade de se concretizar como qualquer outro dos cenários ainda a ponderar pelo Presidente de República depois dos encontros com os partidos que vai ter esta semana.
A situação de fundo que explica o volte-face é o facto de, pela primeira vez na história da democracia portuguesa do último meio século (com exceção do ano atípico de 1985), a força que ganhou as eleições não ter no Parlamento uma maioria do seu próprio campo político-ideológico. Somados, os votos à esquerda pesam mais, podendo por isso impedir – se houver acordo entre as diferentes formações que integram essa área – PS, PCP e BE – quaisquer medidas governativas que precisem de ser aprovadas na Assembleia da República.
Ainda assim, a expectativa generalizada, quando foram conhecidos os resultados, na noite de 4 de Outubro, era de que o Partido Socialista – de acordo com a tradição das últimas décadas – se inclinasse mais para um entendimento com a direita, abstendo-se na votação do orçamento para o próximo ano e dando assim luz verde à continuação do atual executivo, que reúne PSD com CDS.
Duas circunstância vieram, entretanto, perturbar esse cenário e infirmar as previsões dos analistas:
1) a inclinação do atual líder do PS, António Costa, para acordos com a esquerda – a exemplo do que fez enquanto foi presidente da Câmara Municipal de Lisboa; e
2) a disponibilidade manifestada pela primeira vez pelos comunistas e pelos bloquistas de chegarem a entendimentos com os socialistas com vista à formação de um executivo.
Esta mudança de atitude, a confirmar-se, é uma viragem histórica no quadro político português.
Desde o 25 de Novembro de 1975, quando foi derrotada no confronto militar com a direita, a extrema esquerda – e sobretudo os comunistas, sua ala mais organizada e combativa, contando com o apoio da URSS – esteve sempre confinada a um papel de protesto. Não chegou a ser banida do sistema, como alguns queriam; mas, olhada como quinta coluna, Guerra Fria oblige, foi-lhe ferreamente barrado o acesso a quaisquer responsabilidades governativas, consentindo-se, no máximo, que administrasse o poder local.
Uma capitis diminutio a que o PCP parecia aliás ter-se afeiçoado, na situação confortável de não ter que assumir compromissos.
Agora, um quarto de século volvido sobre a queda do muro de Berlim, essa atitude, aparentemente, mudou. Com o espantalho do comunismo morto, não haveria mais anátema e o campo estaria aberto para uma participação comunista no governo.
Mais fácil dizê-lo do que concretizá-lo. Estimulada ao longo de décadas pelos sectores mais conservadores, em particular da Igreja Católica (que agora mesmo veio dizer pela voz do Cardeal Patriarca de Lisboa achar “mais natural” um acordo do PS com o PSD e o CDS!), cristalizou no país uma atitude hostil em relação à esquerda de uma forma geral e em particular aos comunistas, que não será fácil ultrapassar. A sua própria intransigência contribuiu para isso. Basta lembrar que foi com o voto dos comunistas e dos bloquistas circunstancialmente aliados à direita que em 2011 foi derrubado o governo socialista de José Sócrates. E na recente campanha eleitoral, comunistas e bloquista reservaram para o PS boa parte das suas críticas mais ferozes.
Mas a verdade é que, depois da experiência cáustica do governo de direita dos últimos quatro anos, a esquerda à esquerda do PS parece, ainda que relutantemente, ter aprendido a lição e estar aberta a entendimentos com os socialistas.
Dada a história recente, é legítimo que muito se interroguem sobre a consistência dessa mudança de atitude. E se questionem também sobre se será possível compatibilizar os compromissos internacionais do país – União Europeia e NATO, em particular – com a presença da extrema esquerda no poder, sabendo-se como se sabe que os partidos que a integram não escondem, por exemplo, ser contra o euro e o Pacto Orçamental e pela reestruturação da dívida.
Ou seja, a URSS já não existe, mas há hoje outras linhas vermelhas que continuariam a aconselhar o afastamento da esquerda do poder.
A isto pode objetar-se que têm sido as políticas da direita a produzir resultados mais negativos e potencialmente mais perigosos para o equilíbrio do sistema e da sociedade, a ponto de ser aconselhável um reequilíbrio ao centro que só o PS está em condições de assegurar, precisando para isso, do apoio da extrema esquerda, ainda que limitado a algumas políticas e sem pôr em causa o essencial dos compromissos externos.
O sistema político de governo, ao polarizar-se em dois grandes eixos e incluindo sectores que até hoje dele estavam excluídos, poderia até beneficiar-se da experiência. A democracia, consolidada em Novembro de 1975, ficaria agora mais completa, assumindo os sectores que então marginalizou. O “arco da governação” abriria em toda a sua plenitude.
Resta saber se a esquerda à esquerda do PS está disponível para sacrificar o que resta do seu radicalismo, encetando um processo de aggiornamento ao qual sempre resistiu com receio de perder a sua própria identidade. E também se o PS não se dividirá se encetar por este caminho, como sugerem as críticas e advertências de algumas das suas figuras vindas a lume na última semana.
Uma coisa é certa – um simples acordo tático da esquerda com os socialistas para viabilizar o próximo orçamento será insuficiente para garantir a tão necessária estabilidade que todos dizem defender. Ou seja, a esquerda já pode governar?
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.