Quando da saída do regime de exceção, em 1985, graças, fundamentalmente, ao trabalho dos advogados e da OAB, no qual se utilizou, desde a década de 70, da arma da palavra, o tema dominante era a necessidade de uma Constituinte. Estou convencido de que os guerrilheiros apenas atrasaram o processo de democratização, porque parte deles treinada em Cuba e utilizando-se de armas erradas pretendia implantar um regime semelhante ao da mais antiga ditadura do continente.
Quando todos os jornais eram obrigados a publicar receitas de bolos ou poemas de Camões em lugar de matérias censuradas, a OAB era a única instituição que, abertamente, lutava pela redemocratização, não cerceada em sua luta, o que permitiu o fim do regime de exceção sem derramamento de sangue, na década de 80.
Eleito o presidente Tancredo Neves e já no primeiro dia do mandato, assumindo o presidente Sarney a direção do país, a pressão por uma Constituição democrática foi de tal ordem que a EC n. 26/86 convocou uma Constituinte, a meu ver derivada, que representou a vontade popular de um novo estatuto supremo. Nomeado para relatar o procedimento para a convocação, o então deputado Flávio Bierrenbach foi afastado da relatoria por ter pretendido criar uma Constituinte exclusiva, de tal maneira que prevaleceu a tese de que os parlamentares é que deveriam elaborar a Constituição, muito embora não fosse desconhecido o fato de que, por ocuparem cargos do Legislativo, poderiam atuar na Constituinte em causa própria.
O texto aprovado em 5 de outubro de 1988 com fantástica adiposidade de matéria não constitucional, mas com extraordinário elenco de disposições para manutenção do equilíbrio de poderes, tornou-se, de rigor, a mais democrática Constituição brasileira. Seu maior mérito foi consolidar o regime democrático no país, graças à harmonia e independência dos poderes. Seu maior demérito foi ter constituído uma Federação maior do que o PIB, que sufoca o cidadão que paga 35% de toda a riqueza anual para sustentar uma máquina burocrática esclerosada, que se auto-outorga benesses que, uma vez concedidas, passam a ser constitucionalizadas e imutáveis. Esta é a razão pela qual a ideia de uma Constituinte exclusiva renasce para adequar a Federação brasileira à sociedade e a seu PIB.
À evidência, uma Constituinte exclusiva necessitaria, como já disse em artigo para a Folha (Uma Constituinte exclusiva, 08/08/2006), que seus participantes não fossem políticos interessados em manter sua carreira pública, pois terminariam por escrever uma Constituição à sua imagem e semelhança, e não à imagem da sociedade e do povo. Para isto, haveria necessidade de uma grande movimentação popular para que os parlamentares fossem obrigados a elaborar uma convocação, outorgando poderes a uma Constituinte exclusiva, eleita pelo povo e cujos constituintes, uma vez elaborado o texto, em prazo máximo de dois anos, voltariam para suas casas e não se candidatariam às eleições seguintes.
Não há impedimento para que seja convocada tal assembleia para redefinir o perfil legal maior do país, desde que não fira as cláusulas pétreas do § 4º do artigo 60 do atual texto constitucional, a saber: a forma federativa; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação de poderes e os direitos e garantias individuais.
Tenho a convicção de que o país, no que diz respeito à estrutura da Federação, corre o risco de tornar-se ingovernável com as reivindicações crescentes e irresponsáveis da burocracia que, alheia à crise social e mundial, reivindica aumentos desproporcionais à realidade e benesses que tornam “a sociedade não governamental” uma espécie de sociedade de “escravos da gleba”, sujeita aos novos senhores feudais do século 21, ou seja, à estrutura política e burocrática brasileira.
Temas essenciais como a simplificação do sistema tributário; o enxugamento da máquina administrativa inchada; a modernização do sistema previdenciário; a adequação dos encargos trabalhistas à realidade moderna; a eliminação das descompetitividades interna e externa, fiscal e administrativa; a implantação de controles efetivos sobre os três poderes, a reforma política e muitos outros pontos deveriam ser previamente definidos e, uma vez eleita a Constituinte exclusiva, deveriam ser levados ao debate para que a Constituição passasse a expressar a vontade popular em dotar o país de instrumentos viáveis para o progresso e a concorrência internacional.
Não desconheço as dificuldades de os políticos cortarem em sua própria carne, delegando para uma Comissão de Notáveis, eleita pelo povo, a elaboração do texto, pois a eles compete a aprovação de emenda constitucional de convocação, mas estou convencido de que, se o movimento for deflagrado à luz do que os árabes estão demonstrando ao contestarem suas ditaduras, não haverá como o Congresso não se curvar ao apelo democrático popular.
Enfim, estamos em novos tempos, e as ideias moralizadoras e purificadoras dos hábitos políticos devem ser estimuladas.
Dr.Ives Gandra Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Serra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU – [email protected] e escreve quinzenalmente para o Jornal Mundo Lusíada.