Duelo em Curitiba, por Carlos Fino

Sérgio Moro. Lula da Silva. Fotos Agencia Brasil

Por Carlos Fino

Nesta quarta-feira, 10 de Maio, o Brasil tem encontro marcado consigo mesmo: em Curitiba, capital do Paraná, vão estar pela primeira vez, frente a frente, o juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, e o ex-presidente Lula da Silva, arguido em pelo menos cinco processos, sob suspeita de corrupção.

Como na trama de um filme, este é o momento-chave em que se enfrentam dois dos personagens centrais que encarnam os polos da contradição em jogo. Se o filme fosse um western, este seria o momento do duelo decisivo.

De um lado, o jovem magistrado que preside aos julgamentos em primeira instância dos envolvidos na Lava Jato – a maior operação de sempre contra a corrupção no Brasil (só equiparável à sua matriz italiana, a operação Mãos Limpas, na Itália dos anos 90) – o que lhe granjeou grande notoriedade nacional e internacional.

Do outro, o antigo sindicalista de origem humilde, que fez história ao chegar à presidência, o homem de quem Obama disse um dia, numa reunião do G20, “Este é o cara!”. Lula saiu do cargo, em 2008, com mais de oitenta por cento de aprovação e ainda hoje desfruta, segundo as sondagens, do apoio de pelo menos um terço do eleitorado.

À primeira vista, a leitura é simples e contrastante: de um lado, a luta contra a corrupção; do outro, o financiamento ilegal da política e dos políticos, tudo concentrado num caso exemplar para mostrar que, num país democrático de direito, ninguém está acima da lei.

Mas este não é um “filme” menor, de bons contra maus, heróis e bandidos. Os personagens e o contexto são complexos, a leitura não é fácil e o desfecho pode ser surpreendente.

Lula – já se percebeu há muito tempo (pelo menos desde o Mensalão, em 2005) – não é propriamente um santo. E o PT, com os seus esquemas, muito menos.

Moro, por seu turno, também já mostrou alguma falta de isenção: basta lembrar a desnecessária detenção coercitiva do ex-presidente para um primeiro interrogatório, o convívio sorridente do juiz com alguns políticos sob denúncia, ou ainda a divulgação de gravações obtidas fora do prazo, contra parecer do próprio Supremo…

JUSTIÇA OU POLÍTICA?

Nestas circunstâncias, a dramatização é enorme e a politização inevitável, sendo difícil esperar um juízo ponderado e sereno, capaz de ser acatado sem contestações nem problemas por ambos os lados.

Boa parte das classes médias que no início da década apoiaram Lula está hoje desiludida com as dimensões da corrupção reveladas pela Lava Jato. E por isso, ou se desinteressou da política, ou passou do centro-esquerda para o centro-direita, exigindo agora a condenação do líder operário, em nome da moral e do interesse público.

Os petistas contrapõem, no entanto, que sendo a política brasileira o que é, não se deve fazer de Lula um bode expiatório.

Se – argumentam –  a norma de financiamento da política brasileira sempre foi, nas últimas décadas, o chamado “caixa dois”; se, de uma forma ou de outra, nesse tipo de prática estiveram envolvidos pelo menos cinco dos últimos chefes de Estado – Sarney, Collor, FHC, Lula e Dilma; se, finalmente, sobre o próprio presidente atual, Michel Temer, pesam também suspeitas e acusações semelhantes, porquê a insistência em fazer de Lula – e só de Lula – um caso exemplar?

Em qualquer circunstância, os partidários de Lula, que se mobilizam para ir a Curitiba acompanhar o depoimento frente ao tribunal, irão sempre dizer que o juiz foi politicamente motivado e que o objetivo não é tanto fazer justiça como sobretudo liquidar moralmente Lula e eventualmente impedir que se recandidate à presidência, em 2018.

Movidos pelo desencanto tardio ou pelo antagonismo político que sempre lhe dedicaram, muitos insistem, no entanto, em que “se faça justiça” e a cabeça de Lula lhes seja servida numa bandeja.

Mas o caso não é tão óbvio. Não só pelas paixões políticas que pode desencadear – sempre com o perigo de manifestações violentas e confrontos em perspectiva – como pelas circunstâncias propriamente jurídicas que envolvem os processos.

Se as denúncias não tiverem a fundamentá-las provas e evidências concretas e insofismáveis, poderá Moro condenar só com base em declarações e na sua aparente convicção de que Lula era o chefe do esquema de corrupção (como já afirmaram alguns dos denunciantes presos, na mira de conseguirem perdão de pena ou redução de prazo)?

Os magistrados dividem-se e há já fraturas expostas no próprio Supremo, ameaçando aprofundar a crise sistémica no país.

À espreita estão já políticos mais radicais, prontos a explorar o descontentamento de ambos lados. Aconteceu em Itália no final da Mãos Limpas e pode acontecer aqui no fim da Lava Jato.

Afinal, ao pôr em causa políticos de todos os quadrantes – por mais que os media centrem as atenções em Lula – a operação policial parece ter gerado uma espécie de união sagrada,         “com Supremo e tudo”, destinada a “estancar a sangria”, como dizia – em gravação oculta  –  um dos políticos denunciados.

O “filme”, como se vê, é tudo menos simples. A trama é extremamente complicada e os resultados ainda incertos. Por mais decisivo que se apresente, o duelo de quarta-feira pode por isso não ser ainda o fim da história.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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