Por Carlos Fino
Nos meus verdes anos, entre o final do liceu e o começo da universidade, pouco ou nada sabia da revolução russa. Nessa altura, no interior do Alentejo, de onde vinha, a informação era pouca e a leitura escassa, embora houvesse grupo de teatro amador que levava à cena Almeida Garrett e, aos poucos, começassem, também, a chegar os livros dos primeiros neorrealistas.
Mas alguma coisa transpirava, nem que fosse a contrario sensu, através dos jornais controlados pela Censura. Havia, por exemplo, pequenas notas publicadas nas páginas interiores, em que se dava conta de sentenças pesadas contra “elementos subversivos” ligados ao “chamado Partido Comunista Português” – algo que cedo me começou a intrigar: quem seriam aquelas pessoas, que o regime de Salazar tão duramente condenava?
Já antes, no final dos anos 50, tinha havido uma greve dos trabalhadores agrícolas pela jornada de 8 horas (e não de Sol a Sol, como ainda se praticava) em que interveio a Guarda Nacional Republicana, chamada para dispersar ajuntamentos. Fui levado à frente, de corrida, empurrado para casa, numa dessas intervenções, por guardas a cavalo; e foi então que ouvi, talvez pela primeira vez, falar de comunismo e “agitadores comunistas” sem entender muito bem do que se tratava…
Mas era algo que, para o meu avô Manuel, pequeno agricultor quase analfabeto, tinha, certamente, conotação negativa. Lembro-me de uma vez, no café ligado à Pensão Central, gerida pela minha avó, quando um trabalhador já avinhado se recusava teimosamente a sair, apesar do adiantado da hora, o bom do Manel puxou de valente martelo de orelhas e entre os impropérios que gritou, de “arma” na mão – “seu isto, seu aquilo…”, ouvi um que não conhecia e nunca mais esqueci – “seu bolchevique!”. Devia ser forte porque o homem, depois disso, resolveu, finalmente, sair…
Só quando, nos anos 60, mudámos do interior do Alentejo para a periferia de Lisboa, a fim de eu e as minhas irmãs podermos frequentar a universidade, só aí é que esses termos fragmentários começaram a encaixar-se e a fazer pleno sentido.
Nos arredores da capital – a chamada cintura industrial de Lisboa – a militância operária era elevada e com ela vinham os jornais e publicações clandestinas do PCP. Por outro lado, nas tertúlias de estudantes e nos cafés, circulavam algumas revistas europeias como o L’Express, que apesar de liberal, no contexto repressivo português da época fazia figura de revolucionário. E vinham também os livros do B-A-BÁ marxista – desde “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de Engels, ao “Estado e a Revolução” de Lénine, a par das sessões de cinema privadas para ver cinema soviético – “A Mãe”, “Couraçado Potemkin” e outros…
Nessa altura já tinha havido, na URSS, a denúncia dos crimes de Stálin, com repressão em massa, adversários políticos liquidados aos milhares e uma rede de prisões espalhada por todo o vasto território – o GULAG, tão bem descrito por Soljenitsyn; mas entre nós, disso pouco se falava e a União Soviética continuava, apesar disso, a aparecer, para muitos, como um horizonte de esperança.
EU, PECADOR ME CONFESSO
Era o tempo da luta contra a guerra do Vietnam, contra o apartheid na África do Sul, pela liberdade em Portugal… Era o tempo das cerejas e do amor, da poesia de Jacques Prévert e Jacques Brel, dos hippies e dos Beatles: “on était jeunes, on était fous” – como resumia brilhantemente Aznavour na inesquecível La Bohème – que é bem o retrato da nossa juventude. Era o tempo, enfim, em que Sophia de Mello Breyner cantada por Fanhais, nos ensinava a coragem da solidariedade e da entrega não calculada:
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Foi nesse contexto, já na Universidade de Lisboa, que acabei por aderir ao PCP, tendo então participado na organização de diferentes lutas e protestos do movimento estudantil.
Aderi não propriamente porque soubesse o que era o comunismo e por ele estivesse seduzido, mas porque os comunistas surgiam, então, aos meus olhos, como a única força organizada capaz de dar vazão aos meus ímpetos juvenis de participação política, a única força que verdadeiramente lutava contra o regime de Salazar. Um regime de que eu detestava os repetidos rituais corporativos, os jornais censurados, a repressão política, a guerra nas colónias…
Estava então ainda longe de adivinhar que um dia iria ver, na Rússia, os mesmos traços – censura, repressão e guerra. Esse era o paradoxo do PCP – esteio de luta pela liberdade em Portugal, mas, ao mesmo tempo, agente de uma rede mundial cujo centro abrigava, ele próprio, uma ditadura e era, na realidade, pólo de um império com ambições mundiais.
DESENCANTO
Ainda retenho na memória a primeira visita à Rússia, em 1973. Entre a expectativa emocionada no céu, a bordo do avião, e o confronto com a realidade, já em terra, um mundo de ilusões se desfez – Moscovo tentando, com anúncios de plástico e néon, imitar os países capitalistas desenvolvidos era quase patético. Tanto mais que a par desses aparentes sinais de modernidade, continuava a imperar a agit-prop comunista, cobrindo com faixas e cartazes gigantescos fachadas inteiras de edifícios, à semelhança do que acontecera na Alemanha nazi.
E isso a par de um abastecimento alimentar próximo da penúria, com filas diárias de loja em loja para conseguir comprar o essencial. Das primeiras sensações que colhi recordo a de ter imaginado a URSS como um gigante descarnado, sustentando a barra pesada de uma promessa que não estava mais em condições de cumprir.
Percebi, com o tempo, que o desencanto não era só meu – era também da generalidade da população, cansada de propaganda e desejosa de liberdade e acesso ao consumo ocidental.
Com o desencanto, veio naturalmente a reflexão – como era possível tudo aquilo? A ocupação e a guerra não justificavam tudo. Alguma coisa estava mal ou correu mal logo de início, em 1917 – quando os comunistas silenciaram os adversários e sufocaram a nascente democracia após a queda da autocracia.
Reflecti depois que o objetivo de suprimir o mercado – não apenas de regulá-lo, mas de o suprimir! – e simultaneamente cortar a raiz da iniciativa privada “para sempre”, terá sido, porventura, o erro capital – tanto assim, que os próprios bolcheviques tentaram, logo nos anos 20, com a Nova Política Económica – a NEP, arrepiar caminho e abrir espaço ao mercado para estimular a produção.
Tudo se agravaria ainda com a repressão estalinista, que acabou por liquidar o que de melhor havia da intelectualidade russa. Era a concretização do perigo para o qual já advertira Marx – o de a Rússia acabar por seguir na senda do “despotismo asiático”. Seja como for, a experiência é catastrófica e dela o país só agora começa a sair.
Mas isso não anula, no meu entender, o impacto mundial da Revolução Russa e do que, de forma paradoxal e ainda que indiretamente, ela ajudou a criar a Ocidente: os sistemas de educação, saúde e proteção social, por um lado, e todo o movimento de independência da colónias que se seguiu à Segunda Guerra Mundial que a URSS estalinista – outro paradoxo – ajudou, de forma crucial, a vencer. Como diria Brecht – “Homem, olha bem nos olhos de outro homem e verás neles um irmão; Homem, as contradições que te consomem, não são boas, nem más – são a tua própria condição”.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.
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