O escritor e deputado Manuel Alegre, intervém durante a cerimônia de entrega do Prêmio Camões 2017 na Sala D. João VI no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, 2 de fevereiro de 2018. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA
Da Redação
Com Lusa
O primeiro-ministro, António Costa, considerou que, entre as obras de Luís de Camões e Manuel Alegre, há uma “comunhão que atravessa séculos” e destacou o histórico socialista como uma voz “politicamente indomável”, porque “poeticamente livre”.
António Costa discursava no Palácio Nacional da Ajuda, na entrega juntamente com o embaixador do Brasil em Portugal, Luís Alberto Figueiredo Machado, o Prêmio Camões 2017 ao poeta e ex-candidato presidencial Manuel Alegre, numa cerimônia em que estiveram presentes o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, e o ensaísta Eduardo Lourenço, entre outras figuras.
António Costa sustentou no seu discurso que estava “predestinada” a entrega do Prêmio Camões a Manuel Alegre.
“Na obra de Manuel Alegre, os grandes temas e motivos camonianos – a Pátria, o mar, a história, o amor, a saudade, a liberdade – são retomados, cantados e transfigurados pela sua aventurosa experiência pessoal e pela sua visão de homem do nosso tempo. Há, entre a obra de Luís de Camões e a obra de Manuel Alegre, uma comunhão que atravessa os séculos e os seus acontecimentos, porque as suas obras são um diálogo connosco mesmo, com o nosso passado e com o nosso futuro, com a nossa memória e com a nossa esperança”, defendeu o líder do executivo.
O primeiro-ministro foi ainda mais longe nas analogias entre os dois poetas: “Ler Camões é correr o mundo e é voltar a casa depois de se ter corrido o mundo, é reencontrar a voz com que dizemos o nosso nome”.
“É de Portugal que a obra de Camões e a obra de Alegre falam. Falam dessa Pátria de que tantas vezes se queixam para melhor a poderem amar”, disse.
No seu discurso, António Costa referiu-se também ao seu “camarada” Manuel Alegre no plano político, partilhando a tese do poeta sobre a existência de uma “unidade da vida e da obra”.
“E, assim, foi militante e poeta. Manuel Alegre é uma voz politicamente indomável, porque é uma voz poeticamente livre”, apontou António Costa.
Para o primeiro-ministro, “a vasta obra de Manuel Alegre – poesia, ficção, ensaio, crônica, discursos – é irredutível a uma só das suas dimensões, por mais poderosa que seja, pois vive de uma variedade de inspirações e de motes”.
“Obra de coragem e de convicção, poesia de combate e de resistência, é o com certeza. Poesia de combate pela liberdade e pela libertação, poesia de resistência à opressão e ao despotismo”, caracterizou o líder do executivo.
António Costa elogiou ainda o ex-candidato presidencial de 2006 e 2011 nos planos da resistência à ditadura e da luta pela liberdade, dizendo que o autor de ‘Praça da Canção’ “fez da língua, da sua música e da sua magia, um canto amargo de protesto e um canto exaltante de amor à liberdade”.
“Para além e para aquém da resistência política que nesta obra se afirma, ela é, no entanto, antes e depois disso, uma obra de resistência poética. Daí a sua vibração, a sua veemência, a sua validade. Com os seus poemas e a voz que deles nasce, Alegre desafiou poderes, denunciou crimes, comunicou esperanças, deu notícias de júbilo e de tristeza, levantou ânimos, exaltou e empolgou multidões, unidas ou dispersas”, considerou António Costa.
Após destacar a “valentia, a dignidade e ousadia” do histórico socialista, o primeiro-ministro definiu Alegre como um poeta da liberdade e um homem livre”.
“Nisso, não há nele contradições, ambiguidades ou conflitos. É em nome da liberdade que fala, que escreve e que age. É em nome da liberdade que diz, que continua a dizer sim e não”, referiu António Costa, antes de introduzir uma nota de improviso que provocou sorrisos na sala: “Mais vezes diz não do que sim”, observou.
Voz dos filósofos e dos poetas
O escritor Manuel Alegre afirmou que “talvez a crise atual necessite de novo da voz dos filósofos e dos poetas”, defendendo que a literatura e a poesia possam representar a resistência contra o pensamento único.
“Nesta era da globalização e de um novo bezerro de ouro, em que o poder financeiro impõe a sua hegemonia sobre a política, a democracia, a cultura e os próprios Estados, a literatura e, em especial, a poesia, podem ser ainda um território de resistência contra o pensamento único e de defesa da liberdade de escolha de cada povo”, afirmou Manuel Alegre.
O galardoado disse acreditar “que nenhuma revolução na poesia constituiu em si mesma uma revolução política”, mas “nunca houve revolução política sem uma poética da revolução”, pelo que “talvez a crise atual necessite de novo da voz dos filósofos e dos poetas”.
O autor d’”A Praça da Canção” realçou a forma como a Língua Portuguesa une povos de diferentes latitudes e como “houve o português de múltiplas tiranias e de várias resistências”.
“Por mais estranho que pareça, o povo anda na rua a falar Camões. Fala nas ruas de Portugal. Mas também nas ruas do Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, Timor e São Tomé e Príncipe. Não tem consciência disso, não sabe que há um Acordo Ortográfico e também não precisa dele. Mas fala Camões, quero dizer: fala a Língua Portuguesa”, argumentou Alegre.
“Além de escrever a epopeia que fundou a identidade cultural dos portugueses, uma epopeia em que os heróis não são figuras míticas, mas ‘homens de carne e osso’, como diria António Sérgio; além de ter criado uma nova e fantástica linguagem poética a que Eugénio de Andrade chamou ‘festa da língua’, Camões consolidou, como gostava de dizer Mário Cesariny, a Língua Portuguesa tal como nós hoje a escrevemos e falamos”, justificou o poeta.
Língua essa que “anda pelos cinco continentes, língua de diferentes identidades e culturas, em que as vogais, não têm todas a mesma cor. E em que as consoantes, como se sabe, em Portugal assobiam, na África cantam e no Brasil dançam”.
Defendendo que o Português é um “rio de muitos rios, pátria de muitas pátrias”, o autor de “O Canto e as Armas” disse que “houve o português de múltiplas tiranias e de várias resistências”.
“O português da opressão e o português da libertação. Estranha contradição e, ao mesmo tempo, soberbo privilégio de uma língua que tendo sido a do sistema colonial, foi também a língua em que os povos começaram a pensar e a dizer as suas identidades, nos poemas, nas revistas, nos textos fundadores, mais tarde na luta de libertação e finalmente na proclamação da independência”, referiu.
Manuel Alegre disse acreditar “na força mágica, insubmissa e libertadora da palavra poética. Sem esquecer a oralidade, a sonoridade, e o ritmo que é a própria essência do mundo”.
O poeta assumiu-se como herdeiro da tradição dos “cantores da liberdade foram os grandes poetas do século XX, de Miguel Torga e José Régio a Sophia de Mello Breyner passando por Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Eugénio de Andrade, Alexandre O’Neil, António Ramos Rosa, Natália Correia, David Mourão Ferreira, Mário Cesariny e quase todos da geração seguinte”.
“Muitos sofreram a prisão. Afonso Lopes Vieira diria que não seriam dignos de Camões os poetas portugueses que não passassem pelas prisões”, recordou o autor de “Cão como Nós”.
À margem da cerimónia, falando aos jornalistas, o ministro da Cultura disse que a Academia das Ciências de Lisboa indicou para a lista do Nobel de Literatura os nomes de Agustina Bessa-Luís e Manuel Alegre.