I
Em Exercícios de Pesquisa Histórica (Belo Horizonte, Editora PUC Minas, 2011), que reúne seis trabalhos do professor Caio César Boschi, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (1982) e professor titular do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, há o ensaio “Os secretários do governo da capitania de Minas Gerais” em que se destaca a passagem pela Secretaria do Governo do reinol José Honório de Valadares e Aboim, nomeado a 11 de junho de 1784.
Não se quer aqui fazer qualquer reparo ao irrepreensível trabalho de pesquisa encetado por Caio Boschi, cujo livro é apresentado pelo professor Joaquim Romero Magalhães, catedrático da Universidade de Coimbra, que esteve à frente da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Mas, por coincidência, este pesquisador andou em 2010-2011 às voltas com o mesmo Aboim num trabalho de pós-doutorado com bolsa da Universidade Paulista (Unip) sobre a atuação dos ouvidores, juízes de fora, juízes ordinários e vereadores na capitania de São Paulo (1709-1822), consultando a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa, que está em microfilmes no Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). E, portanto, pode acrescentar mais algumas informações a respeito desse personagem.
E quem foi Aboim? Foi uma figura singular não no sentido de que se tenha destacado por sua atuação como burocrata a serviço da Coroa, mas porque sempre remou contra a maré, ou seja, tinha a mania de denunciar as falcatruas que seus superiores e pares costumavam fazer às escondidas. E que não eram poucas. Está claro que uma figura desse naipe no Brasil dos dias de hoje também não teria muito futuro na administração pública. Afinal, mais bem vistos são aqueles que roubam e deixam roubar.
Aboim desembarcou no Brasil pela primeira vez em 1766 para exercer o cargo de provedor da Fazenda Real na vila de Santos. E, no desempenho de suas funções, entrou em muitas discórdias com o governador e capitão-general D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, o morgado de Mateus.
Uma delas é emblemática: em 1774, em carta ao rei acusou o governador de ter passado o contrato dos dízimos a Manuel José Gomes, embora Manuel de Oliveira Cardoso, capitão-mor da cidade de São Paulo, que estivera de posse o contrato dos dízimos por quinze anos, tivesse feito um lance maior. Segundo Aboim, o governador teria dito que era justo mudar de contratador e que assumiria o prejuízo que houvesse para a Fazenda Real. Fica claro que havia por trás da decisão do governador interesses subalternos e inconfessáveis.
As divergências entre ambos, na verdade, começaram logo à chegada do morgado de Mateus, que, a princípio, permaneceu alguns meses na vila de Santos, Depois, ao subir a Serra do Mar, a pretexto de aumentar a arrecadação, o governador exigiu que a Provedoria e seu cofre que estavam em Santos fossem transferidos para a cidade de São Paulo. Ganhou, com isso, a oposição de Aboim, para quem a medida iria desamparar a Alfândega e causar outros prejuízos. Para Aboim, não poderia o cofre da Provedoria ficar “tão distante da praça principal e porto de mar”.
Em São Paulo, sem contar com o apoio do morgado de Mateus, Aboim passou a se atritar também com o ouvidor-geral da comarca Salvador Pereira da Silva, a quem acusava de associar-se ao procurador da Coroa e da Fazenda, Bernardo Rodrigues do Vale, com o objetivo de embargar suas atividades como provedor da Fazenda Real. Para Aboim, o intuito do ouvidor seria o de abolir a jurisdição da Provedoria com o estabelecimento da Junta da Fazenda na capitania.
Com a Câmara, Aboim também não mantinha bom relacionamento desde os seus primeiros dias na cidade, quando mandou que a Casa assumisse o pagamento dos salários dos ouvidores. Na verdade, desde 1758, havia um precatório expedido por seu antecessor na Provedoria, José de Godói Moreira, cobrando promessa que a Câmara de São Paulo e demais câmaras da capitania haviam feito de assumir aquelas despesas, mas que, por pressões políticas, ficara parada em algum cacifo da Casa depois que o procurador pedira vistas. Foi esse precatório que Aboim fez questão de cumprir, descontentando os “homens bons” da Câmara.
II
Depois de três anos de trabalho na cidade de São Paulo, Aboim entraria novamente em rota de colisão com o governador, que o afastaria da função sob a alegação de que teria falsificado contas remetidas ao Erário Régio. Em carta ao ministro Martinho de Melo e Castro, Aboim queixou-se do “ódio” que lhe tinha Bonifácio José de Andrada, escrivão da Provedoria, “homem bom” da vila de Santos, pai do futuro patriarca da Independência, seu declarado inimigo, desde que havia, em outros tempos, mandado sequestrar alguns de seus bens sob a justificativa de danos causados ao Erário Régio. Para Aboim, o governador e o escrivão teriam armado um conluio para prejudicá-lo.
No conluio, Aboim incluiria o novo ouvidor da capitania, José Gomes Pinto de Moraes, ex-juiz de fora da vila de Santos, que acabaria por assumir suas funções. Para ele, o governador devotava-lhe “um ódio” por causa do zelo com que desempenhava suas funções, pois “não consentia que tirassem da Fazenda Real cousa alguma” nem aprovava “despesas inúteis” ou ilicitudes.
Segundo Aboim, o governador mandara elaborar “contas falsas sobre as expedições ao Tibaji e Iguatemi”, que haviam tido o objetivo de impedir o avanço dos castelhanos do Paraguai, embora tivessem constituído um grande e custoso fiasco. Com as falsificações, segundo ele, o governador pretenderia encobrir fraudes. Sem contar que as expedições ao Tibaji, acusou, tinham como intuito disfarçado “afugentar as gentes” para que os protegidos do governador pudessem procurar diamantes “desde a mina de Guaraíba até Furnas”.
Aboim acusou ainda o morgado de Mateus de manter em sua própria casa uma “oficina com materiais que pertenciam à Fazenda Real, o que se praticou por muitos anos”. Por fim, entrou na vida privada do governador, dizendo que o ouvidor José Gomes Pinto de Morais costumava levar à noite mulheres casadas e solteiras para a casa da governação, “sob pretexto de depoimento”. É de lembrar que a esposa do governador ficara no Reino. E ainda acrescentou que o ouvidor “andava amancebado com uma mulher cujo marido era seu associado em negócios”.
Há ainda outras denúncias de Aboim que, por uma questão de espaço, não cabem aqui. Fosse como fosse, o funcionário sempre teve cobertura no Reino porque, de certo modo, colocava as autoridades reinóis a par de uma grande série de safadezas que os seus altos funcionários praticariam no Ultramar.
Perseguido também pelo sucessor do morgado de Mateus, Lobo de Saldanha, não restou a Aboim outra saída a não ser aceitar a sua nomeação para secretário do governo de Angola, o que, de certa forma, mostra que, com o ministro Martinho de Melo e Castro, provavelmente em função dos muitos relatórios que encaminhara ao Reino sempre “em defesa dos interesses da Fazenda Real”, o seu prestígio manteve-se em alta.
Em Angola, porém, em razão do clima extremamente quente, Aboim adoeceu e foi obrigado a retirar-se para o Rio de Janeiro a fim de “curar-se”. Achando-se no Rio de Janeiro, por indicação do ministro Martinho de Melo e Castro, seria nomeado em 1784 pela rainha D. Maria para secretário do governo da capitania de Minas Gerais. E, a partir daqui, para se saber da vida deste funcionário o melhor mesmo é seguir a pesquisa de Caio Boschi.
O que se pode ainda acrescentar é que sua nomeação não seria bem recebida pelo governador e capitão-general Luís da Cunha Meneses, que sempre tratou de afastá-lo das reuniões em que discutia com seus auxiliares os assuntos mais importantes da governação, tendo-o por “espião” do ministro Melo e Castro.
Depois, ao tempo do governo do visconde de Barbacena, Aboim admitiu ter desempenhado o cargo de secretário de governo durante o mandato de Cunha Meneses “só no nome”. Por essa época, conviveria com a maioria daqueles pró-homens que acabariam por se envolver em conversações que redundariam na fracassada conjuração de 1789. Sem espaço para exercer o cargo, continuou a exercitar um hábito que levara de São Paulo: o de escrever extensos relatórios ao Reino sobre o comportamento dos governadores e capitães-generais. De Cunha Meneses, diria que ele confiava “mais nos seus familiares e até nos mulatos”.
Com base na documentação consultada, Caio Boschi reputa como louvável o seu zelo com o acervo da Secretaria de Governo, o que pode comprovar o pesquisador que consultar o fundo documental da Seção Colonial do Arquivo Público Mineiro (cota SC-03).
III
Ao contrário do que pode parecer ao leitor desta resenha, a atuação de Aboim no livro de Boschi ocupa três páginas e meia e, portanto, é apenas tangencial. Haveria, portanto, muitos mais o que dizer sobre outros temas. Mas, como esta recensão já vai longe, que as poucas linhas que restam sirvam para dizer que este livro de Caio Boschi, a exemplo de outras obras suas, constitui desde já uma referência para todo historiador do Brasil colonial.
Nele, o autor mantém a sua preocupação em indicar fontes documentais, como bem sabe quem conhece a participação decisiva que o historiador teve na viabilização do Projeto Resgate, que, criado em 1995, mobilizou equipes de pesquisadores com o objetivo principal de disponibilizar em microfilmes documentos relativos à História do Brasil existentes em arquivos de outros países, sobretudo em Portugal e demais países europeus com os quais o País teve sua vida colonial imbricada.
Como observa o próprio autor na nota de apresentação, o que estes ensaios têm em comum é o fato de buscarem uma melhor compreensão da dinâmica e do funcionamento – não da estrutural formal – de determinadas instituições coloniais, bem como da atuação de personagens que nela tiveram algum protagonismo. Como também bem observa Romero Magalhães no prefácio, vale o título de um destes ensaios cuja inspiração Caio Boschi buscou em carta que D. Fr. Manuel da Cruz mandou ao rei em 1753, a propósito de sua desilusão com o estado em que se encontravam os papéis da Diocese de Mariana: “(…) se se não põe logo no princípio tudo em boa ordem, tudo para o futuro serão desordens”.
Eis o que Caio Boschi tem feito para a atual geração de pesquisadores da História colonial brasileira: ajudar a colocar em boa ordem não só os papéis como as ideias. É uma dívida que a História do Brasil nunca lhe haverá de pagar.
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EXERCÍCIOS DE PESQUISA HISTÓRICA, de Caio C. Boschi. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 327 págs., 2011, R$ 48,00.
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Adelto Gonçalves
Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), entre outros. E-mail: [email protected]