Opinião: Esquerda brasileira subdesenvolvida

Por Amadeu Roberto Garrido de Paula

Dilma_impeachmentAs esquerdas mundiais (o plural é necessário), ao longo da história, que pode remontar aos idos de 1789 na França (revolução francesa), assumiram vestimentas várias, conforme as conjunturas. Nada demais, salvo no que respeita à contradição com o idealismo único que apregoam, no sentido de um dia tomarem a feição do “homem novo”, no seio de uma humanidade indistinta – do operário vigoroso, cheio de saúde. Nessa sociedade não se terá lugar para outras personalidades. Se a uniformidade descrita conduzirá ao tédio, é tema que não interessa.

Fundamentalmente, em primeira plana a esquerda lutou pelos direitos, garantias individuais e liberdades públicas, sufocadas por regimes, monárquicos ou não, que batalharam em favor do que é hoje a camada de direitos de primeira geração, exposta, no Brasil, pelo art. 5º de nossa Constituição. Esse ideário empolgou o terceiro estado, vitorioso e depois imerso no “Terror”, que devastou o terreno para outro tipo de opressão.

Ao longo de décadas, a esquerda francesa seguiu o modelo marxista e sua oposição implacável ao capitalismo nascente, contrastando as indústrias, os salários aviltantes, as condições de trabalho que levavam até crianças de dois anos a realizar atividades simples e automáticas, mediante a pregação da luta de classes, a superação da burguesia pelo proletariado, a ditadura destes e o final nirvana, retratado na imagem descrita.

Os sindicatos obreiros, seguidos da contrafação dos patronais, e a formulação de um direito do trabalho, foram os maiores desmontadores desse plano “dialético”. Os anéis deram lugar aos dedos, porém esse sistema demonstrou a preferência das grandes massas por uma vida pacífica e razoável, no lugar de uma longa luta e de um idealismo distante do cotidiano.

Ao conquistar o poder, especialmente na Rússia, em 1917,  evidenciou-se que, na prática, a teoria era outra. O partido dos trabalhadores tinha de ser forte e impositivo. Era-lhe indispensável um autoritarismo burocrático, antípoda daqueles primeiros ideais. Os direitos “sociais”, alinhados no art. 7º de nossa Carta Magna, somente poderiam ser implantados por um partido incontrastável. Daí à incontrastabilidade dos sovietes foi um passo. E os privilégios que anunciam todo poder incontrastável compuseram a essência de uma nova classe dominante. As grandes massas populares continuaram a amargar a luta cotidiana pelo pão.

Desse modo as esquerdas assumiram discursos de várias naturezas, em conformidade com sua posição na história.  Fora do poder, manifestam-se de modo incandescente, selvagem, inspirada por uma ética diferente da “burguesa”, não raro a apregoar aqueles direitos de primeira geração, em verdadeiro estelionato eleitoral, porquanto a democracia era um meio e não um fim. Sempre tendo como pressuposto a grandiosidade do Estado, cujo empreendedorismo estava destinado a substituir a iniciativa privada e fazer únicos os direitos de segunda geração. A implacável luta de classes. Conquistado o poder, o lobo se transforma em cordeiro, levado por coligações, concessões, modelo burguês, sem o que, logo perceberam, seria impossível governar. Essa contradição recrudesceu quando tiveram de respeitar um modelo democrático e, a partir dele, paulatinamente buscar o ideal originário, cada vez mais distante e apagado.

Nessas circunstâncias, animadas por um projeto de poder e, não, de governo, para valer por todos os tempos, quando apeados do poder voltam ao discurso guerreiro, rubro da cor do sangue da luta de classes, atemorizador, o primitivo braço de ferro, em dobro. Nada melhor para jovens e temperamentos mercuriais,  geralmente transmissores de suas idiossincrasias nos imponentes ambientes das salas de aula.

As injustiças, postas, do outro lado, por governos de direita, acumuladores de privilégios e fomentadores de miséria e fome, incapazes de assimilar a ideia central da distribuição de renda e do estado do bem-estar social, alimentaram aquela oposição guerreira.

No Brasil recente, Fernando Henrique Cardoso imbuiu-se do propósito de demonstrar ao mundo que o PT era um partido respeitador das regras democráticas, que fazia o jogo do carisma e da obtenção do apoio das massas fabris, sem nenhuma pretensão autoritária. Assim, em sua percepção dialética, para nosso sociólogo-presidente a vitória do PT, a despeito de subjugar seu próprio partido, era algo inevitável para demonstrar às nações estrangeiras que poderiam continuar investindo no País, com total segurança. O PT não era um lobo mau.

E assim, foram os primeiros governos de Lula e de Dilma Roussef. Reelegeram-se com programas assistenciais, exatamente contrários a seus recônditos ideais, porque pressupõem a continuidade da miséria e dos andrajos remendados. Em momento de vacas gordas, os investimentos aumentaram, o desemprego caiu para limites que os economistas consideram ideais. Não se contava com o fato de, generosamente abastecidos nossos cofres públicos e capitalizadas nossas principais empresas, a corrupção começava a corroer as vísceras do novo partido da ordem, num canhestro presidencialismo de compromissos, na casa de bilhões, até que o mensalão começou a vergar seus apregoados fundamentos. Começou o déblaque, o esvaziamento dos cofres públicos, as prisões de líderes políticos e empresariais, a indústria encolheu desmedidamente, muitos oportunistas abandonaram o barco vistoso de César e a tragédia sheakesperiana culminou no impeachment da Presidente.

Como era esperável, voltou à cena política a ética mercurial, de cabo a rabo, desde os mais eminentes políticos a estudantes equivocados e aos cabos eleitorais que perderam seus cargos de confiança. Tudo nos diz que o enfrentamento será árduo, porquanto somente uma política de austeridade permitirá que superemos o descalabro deixado pelo PT. Diz o governo Temer que está disposto ao enfrentamento. Porém, os responsáveis pelo saque gritarão, a plenos pulmões, a distorção da verdade, para recuperar o terreno perdido: os mecânicos que consertam o automóvel desastrado foram os responsáveis por suas avarias; não os motoristas bêbados e alegres que provocaram sua fortíssima colisão.

 

Por Amadeu Roberto Garrido de Paula, advogado e poeta. Autor do livro Universo Invisível e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas. 

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