É interessante observarmos essa questão levantada pelas pesquisas do IBGE sobre a valorização da mão de obra não especializada no Brasil frente os bacharéis. Não deixa de ser uma ironia, momentânea, mas… Afinal, somos uma sociedade que foi construída sobre desigualdades brutais de renda. E essas disparidades não foram reduzidas concretamente até hoje, pleno século XXI. Basta recordar a colocação do Brasil no Índice de Desenvolvimento Humano – IDH/PNUD/ONU que nos coloca, entre 187 nações avaliadas, no vexatório 84º lugar, atrás de Chile, Argentina, Cuba, Uruguai, México, Bermudas, entre outros, em 2011.
Desde o Brasil Colônia, ser bacharel era a garantia de uma vida próspera. Dois clássicos que estudam a formação do país tocam nesse assunto: “Sobrados e Mucambos”, de Gilberto Freyre, e também “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque. Dentro de um contexto de um país que nasce do processo de colonização, os bacharéis e doutores fizeram, de certo modo, uma espécie de nova ‘classe da nobreza’. Os filhos dos senhores de engenho que saíam para estudar, quando voltavam traziam a sofisticação das idéias européias, de impactos iluministas etc. E, mais que isso, vinham aprumados para exercer e perpetuar o poder. E nem os princípios da República mudaram essas relações. Isso é muito claro. É baixo o número de mulatos, e menor ainda de negros, que conseguiram atingir a conquista do canudo na faculdade ao longo de boa parte do século XX.
O impacto do processo de globalização, ampliado após a queda do ‘Muro de Berlim’ em 1989 e o final da URSS em 91, levou a uma dinamização da economia, onde o Brasil precisou também rever condutas para encarar a ‘nova ordem mundial’. Uma das questões cruciais era atacar a diferença social existente no país. Afinal, se precisamos ser competitivos num mundo de ‘livre mercado’ (coisa que não é tão livre assim, mas…), é nosso dever avançar na educação, extinguindo o alto número de analfabetos em uma ponta e promovendo o ensino de terceiro grau e a pesquisa na outra.
Um país muito comentado pela sua melhora econômica e social foi a Coréia do Sul, que tinha um PIB menor que o nosso nos anos 1970 e investiram muito em educação. Hoje é um país de respeitável força. Realça a velha relação ‘educação = tecnologia’. O progresso de um país, a sua autonomia e enriquecimento, dependem de desenvolvimento de pesquisas e avanços tecnológicos. Isto acontece somente com investimento educacional em longo prazo.
Desde a segunda metade do século XX o número de bacharéis no país foi aumentando. Mas, havia também uma valorização do ensino técnico, caso do SENAI, voltado basicamente para o trabalhador. Um trabalhador refinado. A faculdade ainda tinha um forte peso humanístico. Lembro que quando entrei para fazer economia, na PUCSP, respeitável universidade paulistana, o primeiro ano oferecia ‘matérias básicas’ para todos os cursos: metodologia, português, filosofia, antropologia e psicologia. Isso tinha um significado fantástico, porque o ‘acadêmico’ era mais do que um futuro profissional de determinada área na visão daquela escola. Ali se fazia também um curso de cidadania, por tudo o que se vivenciava entre aqueles muros do bairro de Perdizes. As coisas mudaram muito nestes 30 anos.
As políticas públicas foram atacadas ao longo dos anos 90 e a educação, assim como a saúde, o transporte etc., passaram a ser privatizados, buscando reduzir os custos e dívida estatal, dentro de uma pretensão acreditando também no setor privado como espaço de qualidade e inovação permanentes.
Como efeito geral, tivemos a decadência evidente da escola pública, de ensino fundamental e médio, cujos resultados mostram assustadoramente que os indivíduos saem da primeira fase semi-analfabetos e aqueles que concluem o ensino médio o fazem com um conteúdo que seria o do fundamental, basicamente.
E, pelo lado da formação superior, os ‘acadêmicos’, outrora uma verdadeira elite, a situação também mudou. Aos trancos e barrancos as públicas vão se mantendo. Todavia, houve uma proliferação de abertura de faculdades como nunca se viu antes. Milhares de vagas surgindo, sem a devida fiscalização da qualidade. Democratizou-se o estudo, explicam governo e entidades patronais das escolas.
Paralelamente, o governo promoveu, em meio às novas políticas públicas colocadas especialmente nos últimos 10 anos, aquilo que acabou resultando na chamada ‘nova classe média’. Esta movimenta 78% do que é comprado em supermercados, 60% das mulheres que vão a salões de beleza, 70% dos cartões de crédito no Brasil e 80% das pessoas que acessam a internet, conforme estudos de 2011. Essa gente toda é aquela que ganha entre R$ 1.500 a 5.000, mais ou menos, segundo o IBGE. Uma fonte rica de recursos que foi capturada pelos novos centros universitários, oferecendo ‘a grande chance para brilhar na profissão’.
Isto representa que as faculdades deixaram de fazer aquela velha formação ‘ampla’ para o estudante em troca de algo mais pragmático: cursos cada vez mais voltados para as exigências do mercado de trabalho. Uma proliferação de cursos com base em apostilas, aulas presenciais ou à distância e afins. Conforme a vontade do freguês. Assim, juntando o aumento de faculdades, mais a ampliação da oferta de bolsas, custeadas pelo governo e também de linhas de crédito facilitadas, estes elementos canalizam milhões de indivíduos para os bancos escolares no intuito da obtenção do velho sonho do canudo, do bacharelado.
Com experiência de 13 anos no setor, sei que a maior parte dos alunos para quem lecionei, em cursos como Jornalismo, Direito e Serviço Social, são pessoas que muitas vezes são os primeiros ou bem próximo a isso em sua família a entrar na faculdade. Mesmo começando com classes de 80, 70 alunos, que são reduzidas a 30 ou 40% no final, vários alunos deixaram de ser empregados de serviços mais simples, como funções domésticas, porque estão se dedicando à faculdade. Temos, assim, um aumento do número de bacharéis e isso faz com que, em inúmeros setores, haja uma queda no valor da mão de obra especializada. Relação oferta e procura. E o que acontece do outro lado, nas funções menos especializadas? Também o efeito da relação oferta e procura: diminui o número de pessoas oferecendo trabalho pesado. É o efeito de todas estas políticas públicas e mudanças acontecidas no país. As pessoas passam a não migrar mais com a mesma intensidade e desespero. Vão ficando nas suas regiões. E quem pode, vai para a escola. Ou seja: os salários dos ‘não qualificados’ fica valorizado pela oferta diminuída e pela intensidade da procura. Doméstica, cuidadora de idosos, babás, governanta, garçons, balconistas e afins, hoje, são muito valorizados e sabem disso. Uma história interessante e bem clara para entender o assunto: no mercado de Ariquemes, Rondônia, estado do norte do país que tem grande crescimento pecuário, a dificuldade de encontrar mão de obra qualificada para trabalhar como vaqueiro, em meados de 2011, fez com que bacharéis em administração empresarial ganhassem em torno de R$ 800,00 a R$ 1100,00, enquanto o salário de um vaqueiro variasse entre R$ 1.200 e R$ 1.500. E, se houvesse indicação do trabalhador entre os pecuaristas, o pagamento pelo trabalho poderia chegar a R$ 2.000,00, livres de moradia e alimentação.
Este é um país que está construindo um alargamento da classe média. Não pode escorregar, falhar nesse sentido. A Europa ou os EUA são países que tem classe média estruturada. São processos históricos longos, de muita luta da sociedade por conquistas. No Brasil, a coisa é muito recente. E fica, então, essa chiadeira toda. A velha classe média não tem mais moleza para contratar uma doméstica por qualquer valor, como antes. Cada vez mais as pessoas vão se profissionalizando, fazendo exigências, notando sua importância nas relações dentro do tecido social, percebendo seus direitos.
Se quisermos ser um país mais justo, com uma classe média ampliada e pobreza reduzida, é por aí o caminho. Manter o salário mínimo com ganhos reais, garantir investimento em regiões que não eram prioridade, caso do Nordeste, continuar fazendo políticas compensatórias etc. Temos que garantir isso, incluindo também uma melhor tributação sobre as riquezas, coisa ainda mal feita, pois os pobres pagam muito imposto em relação aos ricos.
Um bacana no Brasil não quer sujar a mão e roga praga sobre este novo tempo, onde é caro contratar mão de obra de baixa formação escolar. Mas, esse mesmo sujeito sai do país e vai para a Europa, EUA ou Canadá para ser lavador de prato em lanchonetes. Lá ele não se constrange, não reclama… Aqui quer ser privilegiado eternamente. São tempos de mudança. Claro que esta condição de valorização da mão de obra menos qualificada uma hora vai estabilizar etc. Contudo, não deixa de ser interessante nós fazermos uma reflexão sobre essa questão e pensarmos o país em perspectiva, não só do ponto de vista da casa grande, mas também do pião, do vaqueiro. O futuro, para ser melhor, precisa ser melhor para todos. São Paulo, 1º de março de 2012.
Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.