Por Carlos Fino
Não tenhamos ilusões: com a saída da Grã-Bretanha, o projecto europeu – tal como o conhecemos na sua evolução desde o pós-guerra – está em perigo. Foi aberta a caixa de Pandora e tudo pode acontecer, incluindo a desintegração da UE.
O tabu da saída foi quebrado e uma série de outros países, onde as forças eurocépticas têm a vindo a ganhar terreno nos últimos anos, podem agora querer seguir o exemplo dos britânicos e acabar por realizar referendos idênticos. A lista é grande e pode ampliar-se, incluindo desde já França, Holanda, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Hungria, Polónia, talvez também a própria Itália…
Ingleses são peculiares, mas desta vez não são caso isolado
Os ingleses, todos sabemos, são peculiares. Com uma memória histórica da grandeza passada do império, que neles nunca se apagou inteiramente; com hábitos e tradições próprias, bastante diferentes dos países continentais e sempre apoiados numa “relação especial” com os EUA, a sua participação na Europa sempre foi reticente e pouco entusiasta, nunca de alma e coração.
De Gaulle, que viveu em Londres e que os conhecia bem, adivinhava o que se iria passar e por isso opôs-se à entrada da Grã-Bretanha. Foi preciso esperar a sua morte para finalmente, em 1973, com fim do veto da França, Londres passar a integrar as instituições europeias. Onde se comportaria aliás como o líder gaulês previra – sempre desconfiada e oposta à criação de um centro de poder autónomo na Europa, sempre pronta a colher as vantagens da integração, mas sempre relutante em dar o seu contributo para além do mínimo estritamente necessário.
O voto em favor do “não” trouxe-me à memória um episódio que me foi contado por um colega meu, jornalista austríaco correspondente em Moscovo. Disse-me ele que quando jovem, para aperfeiçoar o conhecimento da língua, foi para Inglaterra, através de um programa de intercâmbio. Pois bem – na casa inglesa em que viveu, certa vez, ao pequeno-almoço, estando ele a barrar o pão com manteiga, o dono da casa veio e retirou com uma faca parte da manteiga que ele já tinha colocado na fatia de pão. Uma lição de estrita economia, que podemos interpretar de diferentes maneiras, mas que não deixa de ser bem expressiva de um certo modo de estar.
No fundo, foi isso mesmo que Thatcher fez, quando em 1989 disse à Europa – “I want my money back!”, obtendo um desconto no orçamento da Comunidade.
O que aparentemente aconteceu agora foi o exacerbar de sentimentos antigos devido a uma conjugação de factores diversos, em que avultam os efeitos da prolongada e inflexível política de austeridade comandada pela Alemanha desde a eclosão da crise financeira de 2008. Política que, a par das deficiências estruturais do Euro, agravou muito as condições de vida numa série de países europeus, levando ao crescimento das correntes nacionalistas, populistas e eurocépticas.
Daí que o caso inglês, embora peculiar, não seja único.
Em conjugação com políticas neoliberais que voltaram as costas às lições de Keynes, esse agravamento – atingindo duramente as classes médias – tornou cada vez mais intoleráveis as decisões da gorda burocracia europeia, confortavelmente instalada em Bruxelas e Estrasburgo, dando ordens em organismos não eleitos e funcionando, como o Eurogrupo, à margem da própria legalidade comunitária.
E agora?
As primeiras reações dos líderes europeus não inspiram muita confiança. Basicamente repetem um modus faciendi que está, também ele, na base da crescente desilusão com a União Europeia – a concentração do processo decisório numa espécie de Directório dos grandes, à margem das instituições e dos próprios textos fundadores, quando não mesmo na acção isolada deste ou daquele Estado, com predomínio da Alemanha.
Ora, se alguma coisa é clara em todo este processo, é que os países europeus – quer os ricos do Norte, quer os pobres do Sul – não querem é uma Europa dominada por Berlim. A gravidade da situação exige por isso, não mais reuniões em “petit comité”, mas encontros abertos, em que todos tenham oportunidade de defender os seus interesses e pontos de vista.
Para vencer a crise que agora se abre seria necessária uma auto-crítica profunda, revendo o modo de agir e as políticas seguidas nos últimos anos – em que a solidariedade praticamente desapareceu do léxico europeu, substituída por uma contabilidade estrita e míope, em que não se hesita em castigar os mais fracos – evitando ao mesmo tempo a tentação de responder com uma fuga em frente, em que se tomariam à pressa decisões de ainda maior concentração de poder em Bruxelas.
Com a sua terrível história de guerras, que em todo o lado reforçaram os nacionalismos, impedindo a emergência de um sentimento comum, a Europa só será enquanto o não for. Este é, parece-nos, o grande paradoxo europeu.
Qualquer avanço no sentido de maior unidade terá sempre de ser muito negociado e consensual e nunca imposto à margem dos povos por uma burocracia não eleita. Dada a força das nações, o Parlamente Europeu, por exemplo, teria toda a vantagem em incluir um Câmara Alta, um Senado, em que os países estariam representados de forma igualitária.
Entre a tentação de concentrar agora mais poder em Bruxelas e o perigo da completa desintegração, com o regresso puro e simples a uma Europa das nações, talvez haja um caminho. Esse é o desafio que a decisão britânica nos lança a todos.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.