Por Carlos Fino
Juntamente com uma centena de ex-colegas de estudo, o presidente da república portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, assinalou a semana passada, na Faculdade de Direito de Lisboa/FDL, os 50 anos do curso de 1966.
Um curso que ficou célebre no país por dele terem saído uma série de figuras que se haveriam de notabilizar em diferentes áreas: das artes, cultura e publicismo à sociologia; do sacerdócio e academia à jurisprudência, diplomacia e administração pública, passando, claro, pela política – esfera em que o atual chefe de Estado é o exemplo mais marcante.
Num ambiente descontraído, tanto quanto o permitiu o habitual formalismo português – de que a própria Faculdade de Direito sempre foi um expoente – os ex-colegas, que a vida dispersou por diferentes setores de atividade e por vezes colocou até em campos opostos, puderam por algumas horas confraternizar amenamente:
voltando a percorrer os antigos corredores e a sentar-se nos lugares marcados – como então se praticava – que cada um tinha no anfiteatro 1 da Faculdade, quando, nos verdes anos, iniciava os seus estudos superiores e pousando, no final, para a tradicional foto de família, na escadaria de acesso, tendo por detrás, na frontaria, os desenhos de Almada Negreiros.
Foi, como em geral acontece nos aniversários e efemérides, um breve momento de suspensão do tempo, proporcionando aos participantes a oportunidade de uma reflexão sobre os caminhos percorridos, as realizações alcançadas, porventura também os fracassos, e certamente – já que todos estão para além dos 60 – sobre as vicissitudes e a brevidade da vida.
Não tendo podido participar, limitei-me a seguir o encontro à distância e a rever com alguma saudade – e nalguns casos, confesso, a reconhecer com alguma dificuldade! – os rostos dos antigos colegas pelas fotos e vídeos colocados nas redes sociais. Com isso, vieram à memória uma série de imagens que o tempo não apagou.
TEMPO DE MUDANÇA
Os anos 60 do século passado foram, como se sabe, um período de grande agitação, inquietação e mudança e esse espírito do tempo, como não podia deixar de ser, marcou-nos a todos para sempre.
Esses foram, entre muitas outras coisas, os anos dos hippies, do rock, dos Beatles, do Maio de 68, esse grande movimento contra o autoritarismo, fosse de direita ou de esquerda (“É proibido proibir!”); os anos da Guerra Colonial de Portugal em África (9.000 mortos portugueses, dezenas de milhar africanos) e da Guerra dos EUA no Vietname (para cima de 58 mil americanos e mais de um milhão de vietnamitas mortos)…
No Brasil, foram os anos da ditadura e da repressão, mas também da resistência e da criatividade: os anos da Bossa Nova, João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Morais; os anos do Tropicalismo e também os anos de Chico, Caetano, Gal e Gil… Roberto e Erasmo Carlos, da Jovem Guarda e tantos outros… Como ficar imune ou impune a tudo isso, quando se tinha vinte anos?
Mas cada um viveu, naturalmente, esse período à sua maneira – ora inserindo-se na corrente e participando no movimento em prol da liberdade e da mudança, ora olhando de fora, mais ou menos desconfiado e distanciado, ora participando mesmo na contra-corrente, preferindo a ordem e a estabilidade, o status quo à revolução.
TEMPO DE DESIGUALDADE E CONTRASTES
Esse foi também um tempo de profunda desigualdade e contrastes sociais, que eram bem nítidos ali, na própria Faculdade de Direito de Lisboa. Embora todos fôssemos, em termos genéricos e no quadro de fundo da realidade social portuguesa da época, verdadeiros privilegiados – nos anos 60, o analfabetismo em Portugal ainda rondava os 40% e apenas 0,5% da população tinha formação superior! – entre nós as diferenças também eram abissais.
Havia os que vinham de carro (alguns de luxo e trazidos por motorista!); os que chegavam de transporte público de algum bairro da capital e ainda aqueles que, como eu, vinham da periferia, tendo que se levantar de madrugada para apanhar pelo menos dois transportes – camioneta, primeiro, comboio, depois, desembarcando nalguma estação de onde seguiam(os) a pé até à Universidade…
Os que vinham de famílias já estabelecidas, com parentes no governo e bibliotecas bem fornecidas em casa, tinham naturalmente imensa vantagem sobre os que não possuíam nada disso e se adaptavam mal ao sistema das sebentas, cadernos de resumos em que os professores sintetizavam as aulas, por vezes numa linguagem inacessível ao comum dos mortais…
A própria indumentária nos diferenciava socialmente – uns vinham de fato completo, camisa e gravata de seda, verdadeiros embaixadores avant la lettre, outros faziam ponto de honra em nunca usar gravata, descuidados elegantes, meio anarquistas à la fraçaise, outros ainda imitavam o figurino rico em versão modesta da rua dos Fanqueiros.
Mas o que mais nos diferenciava eram as nossas opções sociais e políticas. Enquanto uns militavam ativamente na Associação de Estudantes (de existência semi-legal, instalada na cave da Faculdade) – onde por contraste com o regime se praticava uma vibrante vida democrática, com eleições para os órgãos dirigentes, reuniões, assembleias-gerais, atividades formativas e lúdicas diversas de apoio aos estudantes, outros preferiam manter-se à margem e não se envolver nesse “antro da esquerda”, onde os mais empenhados eram espiados por funcionários da Faculdade ao serviço da PIDE, a polícia política de Salazar.
Meio século volvido, cada um fará por isso um balanço diferente. Mas o plano em que todos hoje se encontram, sem excluir as clivagens que permanecem, é sem dúvida o da democracia. Quem estava próximo do regime de Salazar certamente compreendeu que o autoritarismo retrógado de direita não tinha nem tem perspectivas; os que então militavam na esquerda também perceberam, já antes, mas sobretudo com a queda da URSS, que a ideia de liquidar o mercado é uma utopia perigosa e sem futuro.
Portugal, entretanto, mudou muito, apesar de ainda haver ecos do atraso de que partimos. Por outro lado, novos desafios se colocam e não menores do que aqueles que a nossa geração teve de enfrentar. Se aqueles que se vão seguir puderem tomar inspiração do empenho e da dedicação com que os melhores de nós desempenh(ar)am as tarefas que lhes couberam, poder-se-á afirmar “missão cumprida”. (Não soa pós-moderno, mas é muito anos 60!).
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.