O direito e a liberdade do intérprete

Causou-me um misto de perplexidade e bom humor que uma longa entrevista concedida à brilhante jornalista Mônica Bergamo fosse quase que inteiramente ignorada e que apenas dois parágrafos dela causassem desproporcional impacto. Tive mesmo a impressão que para os outros aqueles dois parágrafos estariam a concentrar não só tudo o que escrevi na vida, mas toda minha concepção jurídica da ordem social.
Nela, eu disse que a teoria do domínio do fato, tal como foi aplicada na Ação Penal 470, trazia insegurança jurídica e que, se tivesse que ser aplicada, quem teria o domínio do fato completo seria o presidente da República.
Como um velho e modesto advogado provinciano, aprendi com meus mestres – à época em que os lentes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco eram criadores de teorias e não reprodutores eletrônicos ou presenciais de teorias alheias – que a letra da norma, na esmagadora maioria das vezes, exterioriza o seu conteúdo. Meu velho e saudoso mestre Canuto Mendes de Almeida abominava as sofisticações teoréticas, lembrando sempre que, por destinar-se a ser aplicado, deve o direito ser inteligível pela sociedade, pois a clareza do legislador atesta a fidalguia do governante.
Claus Roxin não foi o criador da teoria do domínio do fato, embora seu mais conhecido intérprete. Adaptou-a de Hans Welzel (1939), seu verdadeiro autor, à sua concepção própria e não pretendeu impedir outros juristas de fazerem o mesmo. Em direito, não há marcas e patentes a serem preservadas e a Ministra Rosa Weber, quando a ela se referiu, apresentou-a conforme sua leitura.
Quando, nos dois parágrafos e na breve nota que publiquei na Folha, aludi a seu criador (Welzel) e a seu mais conhecido intérprete e inovador (Roxin), apenas disse que tal teoria, segundo o meu direito de interpretá-la, foi aplicada à falta de prova material consistente.
Lembro que, se há prova material contra quem comanda uma ação, a teoria é despiencienda. As provas por si só já servem para condenar e, conforme o nível da participação do protagonista na condução dos atos delituosos, as penas serão agravadas. Quando as provas materiais inexistem, havendo apenas indícios ou provas testemunhais, é que se lança mão de uma teoria agregadora do comando.
A aplicação de teoria do domínio do fato a Videla e a Fujimori, decorreu de serem presidentes da república. Embora os crimes tenham sido praticados por seus subordinados, estavam estes sob seu comando.
É bem verdade que Hans Welzel não conseguiu a aplicação da teoria aos crimes praticados pelo partido nazista. Para Welzel, quem determina a execução do crime não é dele partícipe, mas autor.
O certo é que os Ministros do Supremo Tribunal Federal que se referiram à teoria, interpretaram-na com a liberdade própria de doutrinadores, não podendo ser criticados de o terem feito, de acordo com suas convicções.
Eu, pessoalmente, nos dois curtos parágrafos da longa entrevista, discordando da conformação que a jurisprudência brasileira dá à teoria do domínio do fato e dos eminentes Ministros que a adotaram, suscitei minha preocupação de que sua adoção, sem que haja provas materiais consistentes, pode trazer insegurança jurídica. E manifestei minha preferência, em direito penal, pela teoria que levou o Supremo Tribunal Federal, após o impeachment do presidente Collor, a absolvê-lo por falta do nexo causal entre conduta e resultado e de prova material consistente.
O aspecto positivo dos dois parágrafos, todavia, foi abrir-se um debate sobre a matéria, que permitirá o aparecimento de debate sobre a matéria, que permitirá o aparecimento de novas exegeses sobre o tema levantado por Hans Welzel.

 

Dr. Ives Gandra Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Serra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU – [email protected] e escreve quinzenalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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