O Brasil não é um país sério? Por Carlos Fino

Por Carlos Fino, em Brasília

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Quando as coisas se complicam demais no Brasil, à falta de melhores argumentos, sempre alguém acaba por rematar com a velha frase atribuída a De Gaulle – “Lé Brésil n’est pas un pays sérieux…”

É o que acontece agora, em que assistimos a assanhada luta política, numa novela que se arrasta há mais de um ano e – à medida que se aproxima do seu epílogo – aparece cada vez mais recheada de episódios ora inusitados e pitorescos,  ora dramáticos e rocambolescos, por vezes mesmo com dimensão de verdadeiros golpes de teatro.

Presenciando os trabalhos da comissão do impeachment, a decorrer na Câmara dos Deputados, com os seus momentos de histeria e chicana, deputados aos gritos agitando cartazes a favor e contra a destituição da presidente, com momentos de quase confronto, a tentação é grande, com efeito, de exclamar, do alto da nossa suposta superioridade europeia, “Le Brésil nest pas um pays sérieux”…

Afirmar, como um adulto falando de um adolescente, que o “Brasil não é um país sério”, pode conferir-nos um sentimento de reconfortante maturidade sustentada na autoridade política daquele que foi um dos grandes líderes europeus do século XX.

Mas nem De Gaulle jamais disse algo parecido, ainda que porventura o tenha pensado, nem a repetição da boutade adianta muito para a compreensão das complexas realidades brasileiras. Para já não falarmos de que também alguns países europeus têm conhecido recentemente – Bélgica, Espanha… – ou mais remotamente – Itália… – crises de poder tão agudas e agitadas quanto aquela que hoje abala de novo o Brasil.

A autoria da frase – pasme-se! – pertence confessadamente ao diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho, que foi embaixador do Brasil em França, entre 1956 e 1964. Disse-a ele naquela época em declarações “off the record” ao correspondente do Jornal do Brasil em Paris, que a reproduziu, atribuindo-a por engano ao General…

Repetida desde então até à saciedade, tornou-se uma espécie de lugar comum elegante para uso indiscriminado e bem pensante de diplomatas, jornalistas, políticos e comentadores.

Aludindo aos aspectos mais festivos e ligeiros do comportamento brasileiro, aqueles que por repetição mediática dos próprios mais se fixaram no nosso imaginário – a célebre tríade do samba, futebol e Carnaval –  a frase tem a sua graça e até uma ponta de verdade.

Mas não nos ajuda muito a entender nem as razões profundas da crise que abala a estabilidade política do país, nem as agudas manifestações de que essa crise por vezes se reveste, como agora acontece, à beira de uma ruptura institucional, com os diferentes poderes digladiando-se a céu aberto, além de exporem também em público as suas próprias divisões internas.

Razões da crise

Pessoalmente, vejo quatro grandes razões na origem da agitação que abala o Brasil – uma de carácter comportamental, outra política e duas de ordem sistémica.

A razão comportamental deriva das características dos deputados, em que dominam os traços étnicos de origem latina, de mistura – como no resto da população – com raízes índias e negras. Resultado: emotividade, nervos à flor da pele, exaltação no confronto de posições e discursos inflamados, em que ainda reverberam ecos do velho parlamentarismo luso-brasileiro do século XIX, com muitos Vossas Excelências e Vossas Senhorias e sempre com uns acentuados decibéis acima da linha de água.

Se, mesmo no Parlamento britânico, o Speaker tem por vezes dificuldade em segurar a Casa, imagine-se o que não acontece aqui: a disputa pelo acesso aos microfones na sala da Câmara dos Deputados, por exemplo, é em geral mais caótica do que uma assembleia de estudantes do anos 60.

Em épocas de confronto político intenso como aquela que está em curso, essa emotividade exaltada pode mesmo dar origem nas ruas a atitudes violentas, como que explosões de um furor recalcado e reprimido latente na cultura brasileira, ela própria fruto do cruzamento de  culturas desiguais e antagónicas.

Referindo-se às muitas revoltas que agitaram o Brasil antes e depois da independência, atribuiu-as Sílvio Romero, logo no final do século XIX, aos “elementos selvagens ou bárbaros que repousam no fundo étnico de nossa nacionalidade”.

razão política tem a ver com a opção feita por Lula, desde o seu primeiro governo – e depois seguida por Dilma – de respeitar a indicação dos procuradores para o cargo de PGR.

O PT tinha criticado duramente a prática anterior dos presidentes nomearem para  Procurador Geral da República homens da sua inteira confiança e lealdade (um deles, talvez o caso mais emblemático – Geraldo Brindeiro, do tempo de Fernando Henrique Cardoso – ficou conhecido como “o engavetador geral”, tal a proficiência demonstrada em arquivar os processos), comprometendo-se por isso desde 2003 a designar o primeiro da lista de três apresentada pela própria instituição, promessa que cumpriu rigorosamente.

Do ponto de vista do funcionamento democrático do Estado, foi um avanço importante, mas que custou muito caro ao Partido dos Trabalhadores e ao próprio Lula.

Com efeito, a partir do momento em que a Presidência – e por extensão o Governo – deixou de controlar a Procuradoria, estava aberto o caminho para esta se voltar contra o próprio executivo, invocando cada vez mais abertamente o princípio da sua própria autonomia.

Um princípio justo e democrático, próprio de um verdadeiro Estado de Direito, mas questionável numa situação como a do Brasil, onde o funcionamento do sistema político assenta no financiamento dos partidos pelas grandes empresas com base em negócios presentes ou futuros com as instituições do Estado, em que as comissões são incorporadas no preço das obras.

A chegada ao poder é abertamente assumida como divisão desse bolo multimilionário e traduz-se na colocação de homens de confiança em lugares-chave das empresas estatais, por forma a assegurar as contratações futuras com as empresas “doadoras”. Os ministérios são assim assumidos pelos partidos no governo estilo “chave na mão”, passando cada deles a controlar as nomeações da base ao topo.

Um sistema assim não pode obviamente funcionar com uma Procuradoria independente e autónoma. Por mais cínico que isso possa parecer, essa é a simples realidade.

Sendo as coisas o que são, ou o PT mudava o sistema e combatia a corrupção, sendo coerente consigo próprio e com a propaganda de dezenas de anos em que levantou essa bandeira, ou pactuava com ele – como largamente pactuou – e então não podia deixar escapar o controlo da PGR. Um duplo erro, portanto, que ameaça ser-lhe fatal.

Os mais cínicos – ou argutos? –  dizem que a partilha do bolo por meios ilícitos é a regra-chave do jogo e que o PT nunca teria chegado ao poder se não a tivesse aceitado. No fundo – dizem  – era esse já o sentido da célebre Carta de Lula aos brasileiros, destinada a apaziguar os mercados, que permitiu finalmente a sua eleição, depois de três tentativas falhadas.

Mas se é assim, mais uma razão para nunca ter deixado escapar o controlo da Procuradoria, a que aliás a Constituição – na sábia perspicácia dos seus fundadores – lhe dava pleno direito. O exemplo do que aconteceu com Collor devia tê-lo prevenido: não se joga o jogo sem observar as suas regras.

Chegamos assim às razões estruturais da presente crise.

Uma delas, desde logo, o sistema de financiamento dos partidos, todos eles, sem excepção, alimentados através da chamada “caixa dois”, formada pelas “doações” das grandes empresas para obter os favores da governação. Na realidade, pagamento de acesso ao poder e às suas decisões por via de inclusão do montante das “doações” no preço dos contratos com o Estado.

Enquanto não houver uma profunda reforma desse sistema e não se controlar ou substituir até inteiramente o financiamento privado por financiamento público, haverá larga margem para corrupção e tráfico de influência.

Por mais que isso possa hoje parecer o cúmulo da ironia, foi em boa parte graças ao PT que aumentou no país o sentimento de que é preciso combater seriamente a corrupção, sorvedouro infinito de recursos que depois faltam ao Estado para investimento e reforço dos serviços públicos. E foi o democratismo do PT em relação à PGR, incompatível com o seu envolvimento nos esquemas, que permitiu a onda de investigações que acabaram por atingi-lo em cheio.

Uma outra situação sistémica complica tudo ainda mais – o excepcional poder e a capacidade de intervenção que a Constituição brasileira de 1988 confere aos agentes do poder judiciário. Não apenas aos juízes, mas a todos os agentes do próprio ministério público.

O modelo inspirador, aqui como noutras áreas da vida social e política brasileira, parece ter sido o norte-americano. Mas adquiriu aqui um desenvolvimento tropical inaudito, que não tem paralelo em qualquer país do mundo. Daí as “liminares” (medidas provisórias) e contra-liminares emitidas sobre qualquer questão, os recursos e contra-recursos, os processos, a capacidade de suscitar a intervenção dos tribunais, incluindo do Supremo Tribunal Federal, onde – para cúmulo de tudo o resto – cada um dos 11 juízes que o integram não se coíbe de emitir opinião prévia às decisões do colectivo e alguns sequer escondem as suas abertas motivações políticas!

Nestas condições, e face ao desentendimento crescente entre os poderes executivo e legislativo, cada vez mais o poder judiciário é solicitado a intervir a propósito de tudo e de nada, num círculo infernal em que a judicialização da política e a politização do judiciário mutuamente se reforçam.

Outra especificidade brasileira

Há inclusive um poder judiciário específico para tudo o que respeita ao processo eleitoral – o Superior Tribunal Eleitoral/STE – com o poder de derrubar o Presidente eleito, se considerar como provado, como pode acontecer agora, que as campanhas tiveram financiamento ilegal.

Suprema hipocrisia, pois toda a gente sabe que é nessa base que o sistema desde sempre funciona. Mas agora que as investigações policiais – preferencialmente centradas no PT – colocaram o sistema a nu, como evitar assumir uma aparente moralização, por mais hipócrita que ela seja?

É esse juízo do STE que espera ainda Dilma, mesmo que consiga escapar ao impeachment.

Como os bispos da Idade Média, em Toledo, por força da então ascendência do direito canónico, os juízes teriam o supremo gozo de ver um “rei” prostrado a seus pés.

A concretizar-se essa hipótese, restará saber se estaremos perante um caso exemplar de bode expiatório depois do qual tudo continuará na mesma, ou se a comoção pública suscitada pela queda do castelo de cartas levará finalmente à profunda reforma do sistema que há muito se impõe.

A não se concretizar, mais cedo ou mais tarde, essa viragem, o presente confronto, ainda que de um lado e do outro se invoquem razões morais e políticas para suscitar indignação popular, não passará, como alguém já observou, de “uma luta de gangs para decidir qual deles continuará a gerir os negócios e arrecadar os lucros”.

Voltando à questão inicial e para concluir – o Brasil é ou não um país sério?

Mais do que um juízo superficial baseado apenas no folclore dos comportamentos políticos, impõe-se considerar a história, compreender as razões das atitudes, conhecer as fontes de inspiração do direito e a relativa juventude da democracia brasileira.  Há uma crise profunda, é certo, mas há também uma vitalidade enorme e um apego à liberdade que se impõe valorizar.

Um sinal de maturidade seria o Supremo, por força das circunstâncias detentor do papel de árbitro derradeiro do confronto a que se assiste, conseguir decisões equilibradas capazes de serenar os ânimos e abrir um espaço de diálogo. Estará à altura do desafio? A questão permanece, por enquanto, em aberto.

Um facto inspira confiança – apesar da agudeza do confronto político, não houve até agora ruptura institucional e a hipótese de uma intervenção dos militares parece totalmente afastada.

Por outro lado, também não há sentimento de tragédia – o que predomina, por entre todas as convulsões, parece ser uma infinita confiança de que tudo se haverá de compor e o Brasil acabará por encontrar o caminho de grandeza que todos acreditam lhe está reservado e as suas imensas riquezas asseguram.

Tudo sinais de que o Brasil, apesar das suas peculiaridades tropicais e das mil peripécias que ora nos espantam ora nos fazem sorrir, é, sim, um país que – sem se tomar excessivamente a sério – tem em si mesmo a força anímica necessária para, sem excessivos traumas, superar a crise e avançar na senda de um futuro à medida das suas ambições de sempre.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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