Da Redação com Lusa
Maria Teresa Horta, uma das “Três Marias” que escreveram as ‘Novas Cartas Portuguesas’, afirma que o livro sempre foi desconsiderado em Portugal e confessa-se “perplexa” com o interesse que parece suscitar agora, 50 anos depois da sua primeira publicação.
A escritora não compreende como pode esta obra ser estudada em várias universidades estrangeiras e ser objeto de diversos estudos internacionais, enquanto em Portugal é praticamente ignorada, considerando que o país continua atrasado em relação à atualidade do livro.
‘Novas Cartas Portuguesas’, escrita por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, a partir das cartas de amor dirigidas a um oficial francês por Mariana Alcoforado, constituiu-se como um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril, que denunciava a guerra colonial, as opressões a que as mulheres eram sujeitas, um sistema judicial persecutório, a emigração e a violência fascista.
Começou a ser escrita em maio de 1971 e foi publicada em abril de 1972, tendo sido banida pelo então regime e as suas autoras levadas a julgamento.
O livro que se assumiu como um marco na história do feminismo, da literatura portuguesa, da oposição ao regime e da luta pela liberdade, após passar o período conturbado que envolveu a sua publicação, atravessou décadas quase como uma inexistência em Portugal, considera Maria Teresa Horta, a única das “Três Marias” ainda viva, em declarações à Lusa, acrescentando não compreender esta situação.
“Ninguém ligou nenhuma às ‘Novas Cartas Portuguesas’ em Portugal, agora, de repente, enlouquece tudo”, disse à Lusa, acrescentando: “Foram escritas há tantos anos. Depois esgotou, mas ninguém fez nada, e de repente, de súbito, de cinco em cinco minutos falam das ‘Novas Cartas’, a pessoa fica perplexa”.
A escritora percebe a importância que a obra teve na altura da sua publicação, porque o caso foi para tribunal, vivia-se numa ditadura e “não podia ser de outra maneira”.
O livro foi, então, publicado com a chancela dos Estúdios Cor, que tinha direção literária de Natália Correia, a única editora que aceitou correr o risco de o publicar — como recordou Maria Teresa Horta — e que, mesmo tendo sido instada a cortar partes, insistiu em publicá-lo na íntegra.
Essa primeira edição foi recolhida e destruída pela censura, três dias após ter sido lançada no mercado — considerada de “conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública” -, e as três autoras tiveram de se apresentar na polícia, onde foram sujeitas a interrogatório.
Com o adensar da situação, a pedido das autoras, um amigo da Maria Isabel Barreno que ia para França levou o livro a Simone de Beauvoir, que foi responsável pela sua divulgação internacional.
“Foi no estrangeiro que as coisas se precipitaram e fizeram das ‘Novas Cartas’ aquilo que as ‘Novas Cartas’ são, quanto a mim, lá fora, porque, aqui dentro, nunca vi que ninguém se preocupasse muito com as ‘Novas Cartas Portuguesas’, é uma coisa estranhíssima, eu até perguntei várias vezes se as pessoas não entendem o que está lá escrito”, afirmou.
“Penso que as pessoas leram as ‘Novas Cartas’ um bocado ao lado, nunca entenderam bem o que nós quisemos dizer. De repente, passado 50 anos, ‘olha escreveram as Novas Cartas, as Novas Cartas são portuguesas'”, ironizou.
O impacto internacional da obra deu-se logo pouco depois da sua divulgação pela escritora Simone de Beauvoir e pelo conhecimento público do processo de que as “Três Marias” estavam a ser alvo, com a cobertura do julgamento feita por meios de comunicação internacionais (entre os quais Le Monde, Times, New York Times, Nouvel Observateur e televisões norte-americanas), manifestações feministas em várias embaixadas de Portugal no estrangeiro e a defesa pública da obra e das autoras por várias personalidades internacionais (como Marguerite Duras, Doris Lessing, Iris Murdoch ou Delphine Seyrig).
Estas ações fizeram com que o caso fosse votado, em junho de 1973, numa conferência da National Organization for Women (NOW), em Boston, como a primeira causa feminista internacional, recorda Ana Luísa Amaral, na nota introdutória de uma edição da obra de 2010.
O significado político e estético do livro, que faz dele uma obra que permanece “fundamental”, “teve um reconhecimento além-fronteiras que nunca foi devidamente assinalado, nem estudado em Portugal, reconhecimento evidente no número espantoso de traduções para outras línguas, que o coloca entre os livros portugueses mais traduzidos no estrangeiro”, sublinha Ana Luísa Amaral.
Ainda hoje, a obra é ensinada num grande número de universidades estrangeiras e é objeto de estudo, de dissertações, ensaios e artigos de imprensa internacionais, o que – segundo Maria Teresa Horta – não acontece na mesma medida em Portugal.
“No ensino, os professores portugueses não querem ensinar nada que esteja perto das ‘Novas Cartas’, acho eu, mas enfim, querem que as mulheres continuem… se comportem muito bem, um bocadinho mais modernas do que dantes, mas não muito”, criticou.
A escritora reconhece que hoje há “uma grande diferença” em relação ao que era a realidade feminina no Estado Novo, “mas não tão grande como nas ‘Novas Cartas'”.
Mas não é só no meio estudantil que o livro não tem sido acolhido como lá fora, também entre estudiosos e acadêmicos: Maria Teresa Horta lança o desafio de procurar “textos, artigos, ensaios sobre as ‘Novas Cartas'”, garantindo que em Portugal quase não há, “no estrangeiro sim”.
Segundo Ana Luísa Amaral, o escândalo que rodeou a publicação do livro trouxe como “consequência perversa” a ideia, “sobretudo generalizada em Portugal”, de que se trata de uma obra datada, com uma visão ultrapassada e um feminismo fora de moda.
No entanto, contesta esta perspetiva, que tem dividido opiniões, afirmando que as “Novas cartas portuguesas” podem ser hoje lidas “à luz das mais recentes teorias feministas, ou ‘queer'”.
Quando a primeira edição do livro foi apreendida, as autoras tiveram de se apresentar na polícia, onde foram interrogadas juntas e em separado, para que revelassem quem tinha escrito os textos, em particular as partes consideradas de maior atentado à moral.
Até hoje as três recusaram-se a revelar e ninguém conhece individualmente a autoria de cada texto, como salientou à Lusa Maria Teresa Horta, que contesta uma ideia algo difundida de que a maioria seria obra de Maria Velho da Costa.
“Foram escritas pelas três. Ninguém vai dizer [quem escreveu cada texto]. Elas já estão mortas e eu nem morta nem viva digo quem escreveu, porque nós fizemos uma jura”, afirmou.
“Na família, amigas, amigos, ninguém sabe da minha boca quem escreveu o quê das ‘Novas Cartas'” e assim se manterá para sempre, porque “esta posição faz parte da construção do livro, faz parte principal, até, da construção do livro”.
As ‘Novas Cartas Portuguesas’ começaram a ser escritas em maio de 1971, e durante nove meses as autoras reuniram-se todas as semanas, uma noite por semana, em casa de Maria Teresa Horta, levando consigo os seus textos.
As “Três Marias” chegaram a ir a julgamento, que teve início a 25 de outubro de 1973, e só não foram condenadas porque, após sucessivos incidentes e adiamentos, deu-se a Revolução de 25 de Abril de 1974.