Por Carlos Fino
– Desafiou a maior potência do mundo, nacionalizando os interesses das principais companhias norte-americanas em Cuba;
– enfrentou um brutal bloqueio económico, que dura até aos nossos dias;
– escapou a inúmeras tentativas de assassinato, incluindo um desembarque militar na ilha;
– construiu no país sistemas de saúde e educação públicas que merecem os maiores elogios por parte dos organismos especializados das Nações Unidas e não têm paralelo no mundo em desenvolvimento;
– incentivou – sem êxito – a guerrilha na América Latina, esteve no centro de um possível confronto nuclear e
– de caminho, ainda colocou um exército em Angola, cuja acção vitoriosa foi decisiva para o fim do racismo e do apartheid na África do Sul…
Em contrapartida,
– nunca cumpriu a promessa de realizar eleições livres;
– perseguiu e executou opositores;
– condenou dissidentes, incluindo jornalistas, a longas penas de prisão;
– não respeitou os direitos de livre expressão do pensamento, reunião e associação;
– cerceou drasticamente as liberdades de circulação e de culto (esta, mais tarde, bastante mitigada);
– deu origem a um êxodo em massa que levou numerosos técnicos e intelectuais a abandonarem o país.
No mínimo controverso e sempre superlativo de luz e sombra, Fidel foi inegavelmente um personagem de dimensão histórica – talvez o último grande personagem do século XX, a ponto de se poder porventura afirmar que este só agora, com o seu desaparecimento, verdadeiramente terminou.
O grande paradoxo é que para o seu crescimento a ponto de se transformar num mito de proporções mundiais, contribuiu sem dúvida a intransigência norte-americana.
Feridos no seu orgulho de grande potência, incapazes de aceitar tranquilamente o desafio que se levantava a escassos 140 kms da sua costa sul, os EUA, ao optarem pela hostilidade permanente em vez do diálogo, acabaram por elevar Fidel a símbolo internacional da luta por um desenvolvimento independente.
Paradoxo tanto maior quanto é certo que, no plano do confronto entre capitalismo e socialismo, que dominou o século, Fidel perdeu a batalha. O sistema que defendia e em cujos defensores se apoiava, colapsou, obrigando os seus defensores em todo o mundo a reorientar-se e rever posições, programas e tácticas de luta.
Foi a guerra aberta que o império lhe moveu que ajudou Fidel a manter até ao fim a imagem de resistente irreconciliável, mesmo quando, já na última década, empurrado pela doença, cedeu o leme ao irmão Raúl e acabou por admitir transformações no sentido da liberdade de iniciativa económica que antes sempre recusara.
Mudanças tímidas, do mesmo tipo das que foram introduzidas na ex URSS ainda por Lénine, quando, logo nos anos 1920, se tornou evidente que sem iniciativa privada a economia não deslanchava. Mudanças com mais de 100 anos de vida, que só agora Cuba começa a introduzir como se fosse uma grande reviravolta, o que só sublinha o impasse a que se chegou e marca o patético da situação.
Hoje, desaparecida a URSS e afastado o perigo comunista, Cuba não representa mais qualquer desafio à hegemonia americana. O regime luta apenas por uma saída honrosa.
E agora?
A questão que agora se coloca é naturalmente a de saber se a morte de Fidel vai possibilitar uma aceleração do movimento já iniciado rumo à liberalização.
Os donos do poder – basicamente a família Castro e os burocratas do Partido Comunista – vão querer continuar num ritmo alegro ma non tropo… uma evolução na continuidade, à vietnamita ou à chinesa, por forma a conservarem o mais possível o controlo da situação.
Mas todos os sinais que chegam de Cuba dão conta de que as novas gerações, os jovens da internet e do FB, do Whattsap e do Skype, não têm mais a mesmo respeito dos pais e dos avós pela mística da revolução cubana e não estão dispostos a esperar muito mais tempo para poderem ter acesso a melhor nível de vida e maior liberdade.
Mais uma vez, entretanto, tudo vai também depender da atitude de Washington.
Se Trump, a exemplo do que fez durante a campanha, para obter os votos dos emigrados cubanos da Flórida, preferir o confronto ao diálogo, afastando-se da ou revertendo mesmo a aproximação ensaiada por Obama, temo que em vez de maior abertura os EUA acabem, como aconteceu no passado, por contribuir para mais resistência, facultando aos líderes cubanos a possibilidade de insistirem na tecla do patriotismo e do orgulho nacional – áreas em que os cubanos já demonstraram ser imbatíveis.
Esperemos, entretanto, que isso não aconteça. Afinal, Trump é sobretudo um homem de negócios. Nesta como em todas as outras esferas, a natureza, como se sabe, tem horror ao vazio – quem não parece esquece. Ora, quem já está em força em Cuba são a China (energia), o Canadá (minérios), a Espanha (serviços e hotelaria) e até o Brasil (portos)…
Se os EUA continuarem a preferir o confronto ao diálogo, podem perder, além de negócios, a possibilidade acrescida de influenciar os destinos da evolução cubana aberta agora pelo desaparecimento de Fidel – essa última grande figura do século XX … que os próprios norte-americanos ajudaram a criar.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.
1 comentário em “Na morte de Fidel. Por Carlos Fino”
Resta saber o que é que Cuba tem a oferecer aos EUA.