Por Carlos Fino
A destruição do Museu da Língua Portuguesa, no trágico incêndio de há uma semana, constitui um golpe nos planos de recuperação urbana que há mais de uma década vêm sendo prosseguidos em São Paulo.
A Estação da Luz – onde o Museu da Língua estava instalado – é por si mesma um marco arquitectónico de importância histórica. Construído no final do século XIX, com projeto do renomado arquiteto britânico Charles Henry Driver (1832-1900), o edifício tornou-se símbolo do poder económico do Estado de São Paulo, um dos mais dinâmicos do Brasil.
Recuperada de um primeiro incêndio que a atingiu em 1946, a estação transformou-se gradualmente num entroncamento crucial de toda a rede de transportes metro-ferroviários da capital paulista, sendo hoje uma das mais movimentadas da cidade.
Essa crescente presença humana num entroncamento em que diariamente se cruzam milhares de pessoas de diversas proveniências e destinos não terá sido alheia à decisão, tomada em 2002 e concretizada em 2006, de instalar na Estação da Luz o Museu da Língua Portuguesa – resultado da conjugação de múltiplas influências em cinco continentes, num processo histórico milenar que vai dos etruscos e latinos aos povos africanos, asiáticos e indígenas – do Minho a Timor.
Toda essa linha de evolução no tempo estava admiravelmente retratada nos três andares do Museu, com recurso às mais modernas técnicas áudio-visuais interactivas, que faziam do espaço um local simultaneamente educativo e altamente atraente, como o confirma o mais de um milhão de visitantes logo nos três primeiros anos de atividade.
Pelo número e qualidade dos especialistas e artistas envolvidos na sua concepção e pelo modelo de financiamento – conjugando dinheiros públicos e privados com base na Lei Rouanet, que prevê isenções fiscais para investimentos na área da cultura – o Museu era também um modelo que concitava atenções internacionais.
Na qualidade de conselheiro de imprensa da embaixada de Portugal no Brasil fui testemunha por dentro desse interesse. Os mais altos responsáveis do Estado português não escondiam, na altura, a admiração, o reconhecimento e até o desejo – com uma ponta de inveja… – de poder replicar um dia, em Lisboa, uma versão do Museu da Língua Portuguesa.
Afinal, para espanto de muitos, tinha sido o Brasil – muitas vezes acusado de menor atenção à língua ou até de a deturpar – que num gesto altamente criativo e com invejável poder de concretização, tomara a iniciativa de um Museu que teoricamente deveria ter cabido a Portugal…
Chegaram mesmo a ser feitas diligências para se encontrar na capital portuguesa um edifício, junto ao Tejo, onde pudesse ser instalada a versão lusa do Museu da Língua…
Tudo isso, ao mesmo tempo que a EBC – a estação pública brasileira de comunicação – encetava contatos com a RTP – sua congénere portuguesa – para estudar a viabilidade de um canal conjunto de televisão.
Mas com a eclosão da crise financeira internacional de 2008 e a consequente opção por uma política de estrita austeridade, todos esses planos foram, para minha grande pena, relegados ao esquecimento.
Agora, que a página da austeridade pela austeridade parece começar a ser virada, talvez esses planos possam ser recuperados.
Não deixa de ser um bom sinal que o novo ministro português da Cultura, João Soares, tenha rapidamente expressado solidariedade com o Brasil pela trágica ocorrência do incêndio de há uma semana atrás, colocando-se à disposição da Secretaria de Cultura de São Paulo para que o Museu da Língua Portuguesa possa ser recuperado o mais cedo possível.
Em 1996, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Soares reagiu com prontidão ao incêndio que destruiu parcialmente o edifício-sede da autarquia e tem, portanto, experiência nessa área, que poderá eventualmente ser útil. E poderia, além disso, se for do interesse dos paulistas, envolver também personalidades e instituições culturais portuguesas no futuro projeto de recuperação (a Fundação Gulbenkian, por exemplo, já era um parceiro e poderá sê-lo agora de novo).
Como não há males que não venham por bem, talvez a tragédia de São Paulo possa afinal constituir um impulso para que os outros países de língua portuguesa se empenhem também na recuperação do Museu e – mais do que isso – estudem juntos a possibilidade de replicar nas respectivas capitais – um espaço idêntico àquele que o pioneirismo do Brasil inaugurou. Aproveitando todos o acervo digital que felizmente se salvou e acrescentando cada um as suas própria particularidades.
Ao fim e ao cabo, a língua não tem dono: a língua é de todos, a língua é de quem a fala. Como escreveu e cantou Caetano Veloso, “A LÍNGUA É MINHA PÁTRIA, E EU NÃO TENHO PÁTRIA, TENHO MÁTRIA, E QUERO FRÁTRIA!”
Brasília, 27 de Dezembro de 2015
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.