Por Carlos Fino
Ao sentar-se hoje no banco dos réus, em Porto Alegre, no processo de recurso da sentença a que foi condenado em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro, da Lava-Jato, o ex-presidente brasileiro Lula da Silva completa um ciclo da sua biografia a todos os títulos excepcional.
Um percurso que o levou da fome e da miséria do Nordeste ao mais alto cargo político do país, depois de anos de militância sindical em que liderou o operariado da cintura industrial de São Paulo, conduzindo-o a greves históricas que abalaram a ditadura, contribuindo de forma decisiva para o fim do regime militar e a redemocratização do Brasil.
A aliança entre as esquerdas e sectores progressistas da Igreja Católica e da intelectualidade deu origem e força crescente ao PT; mas foi a personalidade de Lula, o seu indisputado carisma, junto com a garantia dada aos brasileiros de que não haveria transformações radicais, que lhe granjearam o indispensável apoio das classes médias para vencer as eleições.
Uma vez no poder, Lula encantou o Brasil e o mundo ao pôr em prática políticas sociais que contribuíram para reduzir a pobreza, inserindo milhões de pessoas no mercado de trabalho e no consumo, ao mesmo tempo que – favorecido pela alta dos preços das matérias-primas – conseguia assegurar níveis de crescimento económico mais elevados.
O nordestino de poucas letras, mas muita cultura popular e sagaz inteligência, parecia ter achado a fórmula mágica capaz de saciar os lobos e preservar o rebanho.
Foi então que a Economist colocou o Cristo Redentor na capa transformado em foguetão, “rumo à estrela polar” como diria o poeta António Gedeão. O Brasil, finalmente, parecia começar a concretizar o destino de país do futuro em que sempre acreditou.
A rainha de Inglaterra prestou-lhe homenagem e Obama rendeu-se, apresentando-o em Davos á elite mundial com esta simples frase – “Esse é o cara!” O Brasil talvez nunca tenha desfrutado de tanto prestígio internacional.
A exemplo de milhões de pessoas em todo o mundo – das profundezas do Nordeste ao palácio de Buckingham, das favelas do Rio e São Paulo à Casa Branca – também eu acreditei que Lula tinha vindo para abrir uma nova esperança na política. Era o começo de um novo milénio e talvez por isso era lícito acreditar.
Mas o sonho começou a esvair-se logo em 2005, quando foi revelado o esquema do Mensalão. Mesmo assim, Lula saiu da presidência ao cabo de dois mandatos com um índice de popularidade de 84%, com força suficiente para fazer de uma candidata apagada – Dilma Rousseff – uma sucessora vencedora por duas vezes consecutivas!
É esse homem de percurso absolutamente incomum que está hoje no banco dos réus à espera de uma sentença que pode, no limite – se confirmada a decisão da primeira instância – afastá-lo de disputar, como pretende, as eleições presidenciais deste ano e – pior que isso – colocá-lo atrás das grades.
JUSTIÇA OU POLÍTICA?
Lula, obviamente, não é um santo. Tem manifestas responsabilidades políticas em ter deixado o PT e diferentes personagens a ele ligados envolver-se em esquemas de financiamento ilícito e corrupção – primeiro no Mensalão, e mais tarde, como ficou demonstrado, também no Petrolão. Como se o “bodo aos pobres” – as políticas públicas de apoio aos mais desfavorecidos – justificasse tudo: da corrupção ao aparelhamento do Estado.
Escandalizada com as descobertas da Lava Jato, boa parte das classes médias e da população em geral – todos os que de uma forma ou de outra haviam acreditado nas promessas de regeneração da vida política brasileira feitas ao longo de anos pelo PT – viraram-lhe as costas, isolando-o, desiludidas e ressentidas.
Dadas as características do sistema político brasileiro – o chamado presidencialismo de coligação, em que o presidente eleito raramente conta com o apoio incondicional do Congresso, tendo que negociar caso a caso concessões a cada um dos partidos com assento parlamentar (concessões concretas, de postos e lugares em ministérios que facilitem acesso a pagamentos por parte do meio empresarial – geralmente percentagens em contratos do Estado) – talvez se possa afirmar que Lula não tinha outra saída para poder governar.
Esse seria o preço a pagar pelos programas como o aumento real do salário mínimo, o Bolsa Família – espécie de rendimento social garantido, o Luz para Todos e vários outros favoráveis aos mais pobres.
Mas isso não o isenta de responsabilidades – afinal, o PT durante dezenas de anos sempre condenou esses procedimentos. Muito do seu eleitorado sentiu-se justamente traído, afastando-se, o que retirou ao partido qualquer capacidade de protesto significativo nas ruas contras as mudanças liberais de Temer e das forças que tomaram o poder em 2016, após o impeachment de Dilma.
De alguma forma, hoje, ao sentar-se no banco dos réus em Porto Alegre, Lula paga por isso. Mas responsabilidades políticas são uma coisa, culpa no caso concreto sub júdice, outra totalmente diferente. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, mesmo levando em conta que os juízes julgam hoje também guiando-se, nalguns casos, por indícios e pela convicção.
Mesmo assim, o caso do chamado tríplex apresenta debilidades manifestas. Surgiu da denúncia de um responsável da construtora OAS que estava preso e tinha interesse em que a sua delação fosse aceite para ser libertado. Mas Lula nunca teve as chaves desse apartamento nem a propriedade dele registada em seu nome. Seria, portanto, no máximo, o putativo destinatário de eventual benefício de que não chegou a usufruir. Aliás, um outro tribunal, aqui em Brasília, acabou de incluir esse apartamento na liquidação das dívidas da OAS, o que só por si confirma que a propriedade não é de Lula.
BRASIL REGENERADO?
O caso está manifestamente politizado, com os adversários políticos do ex-presidente a quererem vê-lo condenado e preso, enquanto que os seus apoiantes – e são pelo menos ainda um terço do eleitorado! – o querem ver inocentado para poder concorrer às presidenciais deste ano.
Os adversários de Lula alimentam a narrativa de que a condenação do ex-presidente seria uma prova de que o Brasil se regenerou com a Lava Jato, mostrando urbi et orbi que está finalmente combatendo a corrupção que mina o Estado e sublinhando que “ninguém está acima da lei”…
Seria bom se assim fosse e se outras realidades não contrariassem essa versão edulcorada.
A começar pelo próprio Moro, que por diversas vezes deu provas de pouca isenção – primeiro, quando submeteu Lula a uma espalhafatosa “condução coercitiva”, levando o ex-presidente preso com grande aparato policial e circo mediático para depor, quando ele já tinha garantido que se apresentaria voluntariamente.
Depois, quando gravou – fora do prazo legalmente concedido – e divulgou, ao arrepio da lei, conversas privadas de Lula, que serviram de pretexto para impedir a sua recondução no governo de Dilma, abrindo assim caminho ao processo de impeachment.
Decisões condenadas pelo Supremo, mas sem consequências maiores para o juiz, e às quais é difícil não atribuir cariz manifestamente político.
Tudo isto para já não falarmos do facto extraordinário num Estado de Direito de ser o mesmo juiz que supervisiona, coordena (e, ao que se diz, chega a estimular) as investigações e depois vai ele próprio julgar os réus que, detidos, se apressaram a fazer confissões ao gosto dos procuradores encarregados dos casos.
No que concerne ao tribunal da Relação de Porto Alegre (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), que hoje ouve o caso em segunda instância, também se registou o facto extraordinário do seu presidente, Carlos Eduardo Thompson Flores, se ter apressado a vir a público afirmar que considerava a sentença de Moro “irretocável e histórica” (sic).
Antes disso, contra toda a prática anterior do tribunal, o processo de Lula foi vertiginosamente acelerado, passando à frente de pelo menos meia dúzia de outros casos que estavam na fila, aguardando vez, no manifesto afã de conseguir uma decisão o mais rápido possível. Diz a defesa de Lula – e é difícil não lhe dar algum crédito neste quesito – para com isso obter uma sentença condenatória que, pela Lei da Ficha Limpa, impeça Lula de se registar como candidato à presidência este ano.
A tudo isto poderíamos ainda acrescentar a desigualdade de tratamento, com decisões judiciais díspares, consoante a origem social ou a coloração política dos arguidos, ao mesmo tempo que ao mais alto nível do Estado continuam a actuar como se nada fora personagens já objecto de graves denúncias e acusações, incluindo por parte da Procuradoria Geral da República. A estes concede-se o benefício da permanência no poder e subentende-se leniência se os resultados da economia e das finanças se mostrarem promissores.
É o contraponto, à direita, da ideia peregrina, à esquerda, de que o bodo aos pobres poderia tornar aceitável muita ilegalidade.
Nestas condições, é manifesto que o processo está irremediavelmente maculado pela política e a credibilidade do tribunal posta em causa, mesmo que algum dos juízes, face ao clamor que a questão acabou por levantar nos meios jurídicos internos e internacionais, acabe por se abster e negar unanimidade a uma condenação anunciada.
A ser assim, pela lei, Lula, ainda que condenado, terá oportunidade ampliada de recorrer, conseguindo uma extensão do processo, por forma a poder registar-se como candidato dentro do prazo limite estabelecido.
O resultado da pressa e a insistência em condenar Lula o mais rápido possível, pode, entretanto, ser contrário ao pretendido. Ao insistir na condenação do ex-presidente num caso menor (afinal, ao contrário de outros políticos, Lula não tem milhões na Suíça nem em paraísos fiscais…) o sistema judiciário brasileiro pode estar a fazer dele a vítima política que ele não é.
E dessa forma a aumentar as probabilidades dele acabar por conseguir concorrer ou transferir as suas intenções de voto, agora acrescidas com a volta de muitos que antes o apoiaram, depois se afastaram enojados com os escândalos, mas também não gostam de ver o espectáculo de um sistema que não se exime de ultrapassar a lei se necessário e manifestar opinião antes de julgar, movido manifestamente mais pela política do que propriamente pela justiça.
Se se pretende condenar Lula pelas inegáveis responsabilidades políticas que lhe podem ser imputadas, o melhor juiz é o eleitorado. Se se pretende castigá-lo, além disso, então que os procuradores – a quem cabe o ónus da prova – instruam processos com maior consistência jurídica e os juízes se abstenham de pronunciar fora dos autos, uma vez que, tal como à mulher se César, não lhes basta serem sérios – têm também de o parecer.
À política o que é da política, e à Justiça o que só a ela pertence.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.