Por Carlos Fino
A nomeação de Lula da Silva para chefe da Casa Civil do governo Dilma suscitou uma onda de protestos e agudizou ainda mais a já tensa situação política no país.
Concretizada poucos dias depois das grandes manifestações do passado fim de semana, a entrada do ex-presidente no executivo foi sentida por largos sectores da população, em particular das classes médias urbanas e das elites, como uma verdadeira afronta.
Milhares de pessoas vieram para as ruas numa série de cidades e numa delas – São Bernardo do Campo, na grande São Paulo – chegou mesmo a haver um esboço de confrontos em frente da casa de Lula.
A oposição, que vinha em crescendo e se sentiu legitimada pela amplitude das manifestações, dando já como certa a queda próxima de Dilma – seja por impugnação no Parlamento, seja por decisão do Tribunal Superior Eleitoral com base em acusações de financiamento ilegal de campanha – não se conforma e moveu acções nos tribunais em todas as capitais estaduais contestanto a legalidade da nomeação.
LAVA-JATO
A acrescentar a tudo isto, o juiz Sérgio Moro, que há já dois anos supervisiona a Operação Lava Jato em Curitiba, no Paraná, lançou ainda mais gasolina no fogo ao revelar ontem o conteúdo de uma conversa telefónica entre Dilma e Lula que, no seu entender e de boa parte dos comentadores da media, comprovaria que a finalidade da nomeação teria sido apenas a de colocar Lula ao abrigo das investigações.
O Planalto reagiu, deu interpretação republicana à conversa, desmontando a interpretação dos procuradores de Curitiba e ameaça agora “tomar as medidas cabíveis” contra Moro.
A novela da política brasileira – que, como alguém já disse certeiramente, é melhor que a série House of Cards – não deixa, portanto de nos surpreender.
O clima está ao rubro e os golpes de teatro sucedem-se a ritmo alucinante. Nenhum dos intérpretes está a resguardo de nada – tudo se sabe e tudo vaza para a praça pública quando menos se espera, dando depois origem a infinitas análises e especulações nos media, que por sua vez atiçam ainda mais o clima de confronto.
Tudo isto agravado pela excessiva intervenção do judiciário, que aqui se assume como verdadeiro poder, e que tem capacidade de se imiscuir em tudo e mais alguma coisa – um modelo institucional inspirado no norte-americano, mas que teve no Brasil um desenvolvimento tropical de dimensões inauditas, sem paralelo em qualquer parte do mundo.
O fundo da argumentação de um lado e do outro é moral e jurídico, mas todos sabem que o que está em causa é a política – o controlo do poder do Estado por este ou aquele grupo – ainda que com a promessa de ambos de que irão resolver os problemas do país.
O levantamento do segredo de justiça por Sérgio Moro para poder revelar uma conversa da presidente da república com Lula, no preciso momento em que este aceitava integrar o governo, assim escapando à sua jurisdição, é manifestamente um acto de cariz político não isento, por mais justificação jurídica que se apresente.
Moro, ainda que se sentisse ofendido nos brios por ver escapar-lhe um investigado – que aliás ainda nem sequer é réu, porque não foi acusado de nada – podia, com efeito, ter-se limitado, como lhe competia, a endossar o processo para a instância superior que agora assume as investigações, dado que Lula passou a ter foro privilegiado – o Supremo Tribunal de Justiça.
Ao publicar o conteúdo de uma escuta telefónica de interpretação ambígua como se fosse a prova que lhe faltava – the smoking gun – o juiz de Curitiba assumiu-se mais como justiceiro do que como magistrado imparcial.
Como já acontecera com a intimação forçada de Lula, Há duas semanas, actos como este são contraproducentes, e podem pôr em causa o meritório trabalho de investigação que, pela primeira vez na história do país, levou ao banco dos réus figuras poderosas da política e dos negócios implicadas em corrupção.
ESCÂNDALOS BILIONÁRIOS
Não que esta não existisse antes, bem pelo contrário. Mas tudo ou quase permanecia impune ou porque não chegava a ser investigado, por condescendência da procuradoria ( o Procurador Geral da República da época de Fernando Henrique Cardoso ficou conhecido como “o engavetador-geral”), ou porque os prazos legais transcorriam e os crimes prescreviam.
Agora, a situação mudou radicalmente – desde que a delação premiada foi aprovada, em 1990, primeiro para os crimes hediondos e depois alargada, em 1999, a todos os tipos penais – juízes e procuradores passaram a ter ao seu dispor uma arma poderosíssima, que permitiu, no caso da Lava Jato, desmontar todo o esquema bilionário de corrupção montado na Petrobras e outras empresas públicas com o envolvimento de empreiteiras privadas, incluindo algumas das principais construtoras do país como a Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Camargo Correia, entre outras.
Foi a sucessiva revelação desses escândalos – como já tinha acontecido em 2005 com o Mensalão (pagamento de dinheiro em troca de apoio político) – que foi minando o actual governo, à medida que figuras-chave da política e dos negócios ligadas ao actual poder (mas também à oposição) passaram a ser suspeitas, investigadas e condenadas.
Neste momento, entre dezenas de deputados, encontram-se sob acusação os próprios presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, ambos do PMDB, partido do vice-presidente, Michel Temer, e principal aliado do PT no governo, que aliás já anunciou que pode sair da coligação dentro de um mês!
Como um mal nunca vem só, junta-se à crise moral a crise económica, reflexo em parte da crise internacional, que acabou por atingir o Brasil, mas provocada também por erros de avaliação internos. Resultado – queda acentuada do PIB (-3,8% em 2015, o pior resultado dos últimos 25 anos), aumento da taxa de juros, subida da inflação e do desemprego, estagnação… a ponto de os importantes avanços sociais conseguidos durante os mandatos de Lula estarem agora em perigo.
LULA NA VEIA
Com a luta política ao rubro e as denúncias da Lava Jato a funcionarem como um espécie de Weaky Leaks interno que ameaça em permanência fazer ruir todo o castelo de cartas do sistema político, as forças que ainda sustentam o governo, em particular o PT, acabaram por considerar que Lula poderia ser a salvação – uma espécie de craque que o treinador faz entrar no último quarto de hora para virar o resultado.
Lula está hoje muito longe dos mais de 80% de aprovação que chegou a ter quando deixou o poder. O seu índice de rejeição subiu exponencialmente, com 49% a dizer, hoje, que não voltarão a votar nele. Mas ainda assim e apesar de tudo, há 37% que consideram ter sido ele o melhor presidente do Brasil de todos os tempos.
É este capital político que Dilma quer ver investido no seu próprio executivo, uma espécie de injecção de Lula na veia, como última esperança de recuperação de um governo anémico, isolado e à beira do falhanço, mesmo correndo ela o risco de se tornar numa rainha de Inglaterra ou, no mínimo, de perder boa parte do seu próprio poder.
Lula – que traria com ele algumas figuras conhecidas como Celso Amorim para as Relações Exteriores e Franklin Martins para a Comunicação – conserva uma capacidade de negociação e articulação que de todo em todo falta a Dilma e que poderá fazer a diferença num momento tão crítico como este.
A sua principal tarefa, para já, seria essa – estabilizar o governo e salvar a presidente da impugnação.
De caminho, reactivar a economia, dando segurança aos mercados, e ao mesmo tempo refazer com algumas medidas pontuais a ligação com o povo do PT do qual Dilma progressivamente se afastou, a ponto de quase não a reconhecerem como um dos seus.
MISSÃO IMPOSSÍVEL?
Um programa optimista, em que muitos não acreditam e que a oposição – que já sente o cheiro de sangue e está pronta a saltar para a jugular – odiaria ver triunfar.
Por uma razão simples: a concretizar-se, Lula seria reeleito em 2018 e o PT continuaria no poder por mais quatro anos, mantendo vivo o sonho de um Brasil mais justo.
Nada, neste momento, o garante – a começar pela própria legitimidade de acesso ao cargo de ministro-chefe da Casa Civil, que a oposição e parte do poder judiciário questionam fortemente.
Mas Lula, como se sabe, mais do que um pagador de promessas, considera-se um homem bafejado pela sorte – um homem que ao longo da vida tem sido objeto de vários milagres – desde ter sobrevivido à fome até ter-se tornado o primeiro presidente operário do Brasil.
Agora, não tem alternativa – ou vence esta última batalha, ou perderá o sentido de toda uma vida. Milagre, precisa-se!
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.
1 comentário em “Lula é nomeado e crise agrava-se: milagre precisa-se, por Carlos Fino”
Uma análise objectiva de um jornalista independente e imparcial que sempre se soube impor e eu a admirar.