Liberdade de expressão ou de agressão?

MARIO CRUZ/LUSA

Por IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

O especial de Natal do grupo Porta dos Fundos, exibido pela Netflix, com brutal agressão aos valores de todos os cristãos na figura do fundador de sua religião, foi, por parte da imprensa e por magistrados de diversas instâncias, considerado manifestação enquadrável na liberdade de expressão que todas as pessoas num país democrático, como o Brasil, devem ter. Por esta razão,  embora  inúmeras Igrejas Evangélicas, Instituições Religiosas e Comunidades Católicas tenham pedido fosse proibida a sua exibição, foi permitida com aplausos de parte da imprensa. Teve por justificativa a afirmativa de que a manifestação cultural –-há sérias dúvidas se o filme conteria algo que se poderia enquadrar nessa classificação– não pode sofrer qualquer restrição.
A aceitação por parte dos tribunais provocou, nas redes sociais, charges, com nível humorístico de baixa qualidade e, a meu ver, também, de difícil enquadramento na liberdade de expressão ou na de manifestação cultural. Os autores de tais charges, porém, também entenderam que estavam se valendo da liberdade de expressão ao transformarem ministros da Suprema Corte em bailarinas, em programa denominado “Especial Porta de Trás” e, ainda, o próprio ator do especial veiculado pela Netflix, numa outra charge, intitulada “Especial Porta do Esgoto”, transformado num rato, fugindo para o esgoto e escorraçado por um anjo.
À evidência, todas as três manifestações são falsas, não há nenhum fundamento, são de absoluto mau gosto, tanto aquela exibida pela Netflix, como as charges que correm nas redes sociais.
O episódio, todavia, que teve repercussão, merece uma reflexão desapaixonada sobre a verdadeira extensão da liberdade de expressão, direito esse que não se confunde com o direito de agressão.
O IBGE –-li os dados numa reportagem da Folha–, em 2010, apurou que, no Brasil de aproximadamente 210 milhões de habitantes, apenas 15 milhões de pessoas não acreditam em Deus. Cento e noventa e cinco milhões de pessoas acreditam em Deus, distribuídas num percentual elevado entre católicos (mais de 50%) e evangélicos, embora judeus, muçulmanos, budistas, espíritas, umbandistas e outras religiões tenham também participação, maior ou menor, na crença num Deus Criador.
Ora, se a grande maioria dos brasileiros é cristã (católicos ou evangélicos), se o percentual dos descrentes é insignificante (menos de 8% da população), um filme que objetivou desvirtuar fundamentos da crença da maioria das pessoas, produzido por uma empresa de humoristas, parece fugir à verdadeira liberdade de expressão para ingressar na liberdade de agressão, com intuitos que transcendem, de muito, o mero humor.
Os produtores da farsa talvez desconheçam que no mundo inteiro, há 2.000 anos, pessoas abandonam tudo para viverem uma vida consagrada e dedicada a Cristo, o que vale dizer, abdicando de uma família humana para ingressar numa família religiosa. Para  estas pessoas qualquer agressão aos valores e princípios cristãos é uma agressão à sua própria família, que tem em Cristo a figura central. Agredir a Cristo é como se, por exemplo, se agredisse a honra das Mães dos diretores do Porta dos Fundos ou da Netflix, o que, à evidência, nem eles admitiriam e, nem eu, concordaria.
Creio que o artigo 220 da Constituição Federal, assim redigido: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” tem os limites impostos pelo inciso IV do artigo 221, cuja dicção é a seguinte: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: ….. IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
A meu ver, o filme mencionado, violou o referido dispositivo, pois não se pode falar de ética num filme com tal densidade de inverdades e contra a grande maioria dos valores da população brasileira, não entendendo, como pode ter sido considerado exemplo de liberdade de expressão.
Lembro que a Suprema Corte, embora com composição bem distinta da atual, proibiu a publicação de um livro que negava a existência do Holocausto, por não corresponder à verdade e agredir uma raça. O mesmo poderia, a Suprema Corte, agora, reiterar a jurisprudência passada, lembrando que, por não ser verdade o colocado no filme e, por agredir todos os cristãos, deveria também ser proibido.
No referido julgamento, em que a Suprema Corte proibiu a veiculação do livro sobre o holocausto, o qual negava a existência do martírio do povo judaico, com a morte de milhões de judeus, reduzindo a condenação à morte apenas ao número menor de adversários do III Reich, a tese dominante foi de que o livro não corresponderia a uma interpretação histórica, mas, de rigor, veiculava uma violenta discriminação à comunidade hebreia e uma versão deturpada e preconceituosa da história, que não poderia ser abrangida pela liberdade de expressão como manifestação cultural.
Ora, o mesmo princípio da não verdade no referido filme, deveria servir de base para que a magistratura brasileira, quando tiver que proferir a decisão final defina o que seja liberdade de expressão e que ela não implica o direito de agressão. Se assim decidir, respeitar-se-ia o inciso IV do art. 221 da Constituição Federal, que veda, por meio de audiovisual, sejam feridos, maculados, violentados os princípios éticos e morais da família e da pessoa humana.
“The last, but not the least”.  Teriam os produtores desta agressão coragem de adulterar a figura de Maomé, ridicularizando-a num filme? Impressiona-me, sempre, que todos aqueles que se alegram em atingir os valores dos cristãos, jamais atacam à Maomé, visto que têm, certamente, receio das reações dos  que  professam a fé islamita, a qual não é de mera tolerância, como ocorre com os cristãos.
Por IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio/SP. Professor Emérito da Universidade Mackenzie e das Escolas do Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) e Superior de Guerra (ESG). Catedrático da Universidade do Minho (PORTUGAL); presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio (SP); ex-presidente da Academia Paulista de Letras e do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo).

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