Por Carlos Fino
O Brasil está de parabéns. Apesar de todas as dificuldades e problemas de percurso (obras incompletas, suspeitas de corrupção, desabamento de um viaduto com consequências trágicas, queixas das delegações e bastante confusão à chegada…) os Jogos Olímpicos do Rio estão aí, decorrem normalmente e prometem ser um êxito.
Tudo num ambiente descontraído e num cenário fabuloso: o Rio de Janeiro continua lindo e essa beleza ainda é mais acentuada com a presença de milhares de jovens atletas do mundo inteiro.
Se algumas razões de queixa havia ou há, elas foram ofuscadas e parece terem-se evaporado no calor e brilho da cerimónia de abertura, cuja modernidade, requintada concepção artística e alegria festiva foram unanimemente apreciados.
O contraste não podia aliás ser maior com a controversa situação política do país, que penosamente se arrasta há meses e ainda não tem fim à vista.
As delações da Odebrecht na operação Lava Jato, ocorridas no final da semana, comprometem seriamente a generalidade dos principais responsáveis, tanto do governo como da oposição, incluindo o presidente interino Michel Temer, o que traz no bojo mais instabilidade a curto prazo.
Fruto do empenho e do prestígio interno e internacional de que gozava, na altura, o presidente Lula da Silva, a realização dos Jogos Olímpicos no Rio foi claramente concebida como forma de projetar o país na cena mundial, reforçando a ideia de emergência do Brasil, a sua subida no rating das nações ao nível dos grandes do mundo.
Era então ainda a época da descolagem do Cristo Redentor rumo à estrela polar consagrada na capa da Economist. Depois disso, o foguetão perdeu fôlego, voltou à terra e os Jogos realizam-se agora no contexto de uma das maiores depressões económicas dos últimos anos.
Crise económica e crise política, que mutuamente se reforçam, acabando assim por lançar uma sombra sobre os Jogos, impedindo a grande consagração com que ainda há poucos anos o Brasil sonhava.
Mesmo assim, isso não lhes tira o brilho e o simples facto de estarem a decorrer com toda a normalidade já é uma grande vitória para o país. Uma vitória da brasilidade, por mais controversa e contraditória que esta ainda se apresente.
UMA VITÓRIA DA PORTUGALIDADE?
Em comentários difusos e nas redes sociais logo apareceram, nos últimos dias, algumas vozes proclamando que a vitória do Brasil com a realização destes Jogos era também uma vitória da portugalidade. Será? Tenho as minhas dúvidas.
Por uma atitude compreensível de vincar a sua independência, o Brasil tende, se não a criticar ou rejeitar inteiramente, pelo menos a desvalorizar a herança portuguesa. No mínimo, oblitera ou ignora essa memória. Não tem mesmo feito outra coisa pelo menos desde o modernismo. A ponto de hoje, o comum dos brasileiros nem sequer associar a língua que fala com o país que somos.
Por isso, considerar que a vitória do Brasil é uma vitória da portugalidade é, parece-me, querer “forçar a barra”. No fundo, atitude paternalista de um pai esquecido que insiste em regozijar-se com as realizações de um filho que entretanto o rejeitou. Vitória da portugalidade? Seria a última coisa que passaria pela cabeça dos brasileiros ao assistirem – dentro ou fora do Maracanã – àquela cerimónia linda.
Claro que, em última instância e por uma razão de elementar justiça histórica, não se pode deixar de reconhecer que, se o Brasil é hoje o que é, para o bem e para o mal, há nisso uma contribuição decisiva dos portugueses – no desbravamento e unificação do território, na fundação e desenvolvimento das grandes cidades, na base linguística e cultural comum, no património reconhecido como de interesse mundial pela UNESCO…
Mas tudo isso veio acompanhado de um lastro de destruição, repressão, violência e morte – contra os índios, contra os negros e depois, na fase final da colonização, contra os seus próprios descendentes em luta pela independência – que o Brasil rejeita, condena e em muitos casos prefere esquecer.
Por outro lado, Portugal também tem responsabilidades nessa situação. A começar pelo desinteresse e desconhecimento da sua própria história no Brasil. Talvez porque essa história ocorreu na sua maior parte depois da morte de Camões, em 1580, e por isso não está nos Lusíadas, onde manifestamente falta um canto – o canto da epopeia portuguesa no Brasil. Essa epopeia, não estando nos Lusíadas, não ficou no imaginário nacional.
Já na nossa época, de há 40 anos para cá, com o final da descolonização, Portugal também virou costas, designadamente ao Brasil, passando a apostar tudo ou quase na integração europeia. Só no final dos anos 90, quando iniciou a internacionalização da sua economia, Portugal voltou a descobrir o Brasil, num movimento que os compromissos já assumidos com a UE entretanto condicionaram e limitaram.
Para uma maior aproximação, não bastam aliás as cíclicas “missões empresariais” – como promete agora de novo o novo presidente da república portuguesa. É preciso muito mais do que isso. É necessária toda uma política delineada com visão estratégica e aplicada de forma sistemática, seja qual for o governo.
A começar, naturalmente, por mais troca de informação – o que parece ser fácil e elementar dada língua comum, mas que nunca se concretiza por falta de autêntica vontade política norteada por um desígnio de longo prazo.
Só com mais informação de parte a parte será, talvez, um dia possível ultrapassar o sentimento de estranheza que se instalou nas relações entre os dois países, naquilo que o professor da Universidade de Brasília Amado Cervo caracterizou como “parceria inconclusa”.
Só esse maior conhecimento, com a admissão pelo Brasil do lado positivo da herança lusa e o reconhecimento por parte de Portugal do lado cruel da colonização, poderá eventualmente criar condições para que, um dia, de um lado e do outro, o estranhamento seja ultrapassado.
E as vitórias e derrotas de um passem a ser consideradas e genuinamente sentidas como as vitórias e derrotas do outro. Fazendo finalmente jus à consaguinidade, à história e língua partilhadas.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.