Por Carlos Fino
O Partido Trabalhista britânico tem, desde sábado passado, um novo líder – Jeremy Corbyn, 66, deputado desde os anos 80, conhecido pelas suas posições de esquerda, de clara inspiração socialista e pacifista.
A eleição de Corbyn – pela expressiva maioria de 59,5% do mais de meio milhão de votantes – só foi possível devido à alteração das regras eleitorais do partido, que deixaram de conferir privilégios decisórios aos colégios constituídos de deputados, sindicalistas e militantes, abrindo acesso às urnas a todos, incluindo simpatizantes, numa base igualitária, de acordo com o princípio – um homem, um voto.
A sua ascendência à liderança marca claramente o fim da era Blair, que, para reconquistar o poder para o Labour, do qual se encontrava arredado havia quase duas décadas, se afastou, no final dos anos 90, das velhas tradições socialistas do partido, aproximando-o mais e mais do centro político. Uma mudança que chegou a ser apresentada – sem ironia – pela anterior primeira ministra britânica, Margaret Thatcher, como a sua “mais valiosa herança” deixada à Grã-Bretanha.
A viragem à direita garantiu três vitórias eleitorais consecutivas aos trabalhistas. Mas o apoio de Blair à guerra do Iraque, em 2003, num alinhamento descarado com os EUA de George W. Bush, contra a corrente dominante da opinião pública, nunca foi bem digerido pelo partido. E as políticas restritivas que se seguiram, já com Gordon Brown, acabaram em 2010, por conduzir ao regresso dos conservadores ao poder, sem que os trabalhistas conseguissem, desde então, traçar uma clara política alternativa à austeridade de inspiração neoliberal, agora dominante.
A eleição de Corbyn parece traduzir o crescente descontentamento dos membros do partido – sobretudo os mais jovens – com o que ainda restava do blairismo, sucumbindo à tentação de um regresso às velhas raízes de inspiração socialista do trabalhismo britânico, de que o novo líder tem sido arauto desde que ingressou na vida política.
Uma sedução que se compreende se tivermos em conta os impasses da alternância política sem verdadeira alternativa e sobretudo o facto de as novas gerações não terem memória dos impasses e erros a que conduziram algumas das políticas mais radicais do Labour, nos distantes anos 70 e 80, as quais acabariam por conduzir os Tories ao poder por longos 18 anos.
Estamos, portanto, perante uma clara viragem à esquerda, que causou arrepios em todo o establishment centrista do chamado arco da governação, de que a virulência das primeiras reações do primeiro ministro britânico é bem significativa, ao acolher a eleição de Corbyn na ponta das baionetas:
“O Labour – escreveu David Cameron no twitter – é agora uma ameaça à segurança nacional, à economia e à segurança das famílias.” (sic).
O GRANDE DESAFIO
Jeremy Corbyn não tem a seu favor a história do partido no último meio século. Na verdade, sempre que os trabalhistas tentaram travar ou corrigir a sua trajetória direitista com inflexões à esquerda, acabaram derrotados nas urnas, deixando pelo caminho os líderes que encabeçaram essas tentativas – Tony Benn, Michael Foot, Neil Kinnock… Será Corbyn melhor sucedido onde todos esses falharam?
O desafio é enorme e implica convencer as classes médias de que vale a pena correr os riscos inerentes à quebra do status quo.
O descontentamento com as políticas austeritárias, que têm retirado mais e mais poder de compra à grande maioria e produzido maior desigualdade, é enorme. Mas isso não chega para garantir a mudança. São necessárias políticas credíveis capazes de convencer o eleitorado de que a alternativa não se limita a gastar mais sem garantias de equilíbrio orçamental que deitem tudo a perder.
Entre outras medidas, Corbyn defende o relançamento dos investimentos industriais pelo Estado, a renacionalização dos caminhos de ferro e o apoio financeiro à segurança social. Em termos de política de defesa, manifestou-se em tempos pelo fim da OTAN/NATO, “que deveria ter desaparecido com a guerra fria” e tem sido contrário à renovação do armamento nuclear britânico.
Tudo heresias e pecados mortais que suscitam a fúria dos defensores do status quo e o desagrado dos comentadores dos media main stream.
Alguns temem inclusive que a sua vitória possa levar a uma “guerra civil” no interior do partido, abrindo um conflito declarado com o grupo de deputados eleitos, mais conservadores.
Mas também há quem lembre que já existe um precedente na vida política britânica de um líder que se afirmou, primeiro, contra os velhos donos da sua própria organização e soube depois, pela força do seu empenho e das suas convicções, obter o apoio maioritário do país, acabando por transformar as suas ideias radicais e heterodoxas em quase senso comum dominante.
Esse líder, nos antípodas políticos de Jeremy Corbyn, chamava-se Margaret Thatcher.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012).