A ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) não poderia ser veículo do pleito que se fez junto à Suprema Corte para garantir o aborto de anencéfalos. Fui um dos coautores do anteprojeto da lei que a instituiu (9.882/99) e, segundo o que nela está disposto, só pode ser utilizada para garantir preceito fundamental descumprido, e não para assegurar o direito de matar crianças no ventre materno, violentando – este sim – o preceito fundamental de direito à inviolabilidade da vida, a mais importante das cláusulas pétreas da lei suprema. Este entendimento, entretanto, mereceu apenas quatro votos na Suprema Corte, que considerou ser a ADPF a via processual legítima.
Ocorre que a Suprema Corte não pode legislar. Está proibida, pelo parágrafo 2 do artigo 103 da Constituição Federal, ao estabelecer que, sempre que o Congresso for omisso em legislar e essa omissão implicar negar efetividade a um preceito constitucional, o STF, provocado pela via da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, julgando a ação procedente, só poderá solicitar ao Congresso que faça a lei, sem, contudo, estabelecer prazo para produzir a norma, nem cominar sanção, para o caso de não fazê-lo.
O que se pleiteia na ADPF n 54 é a criação de uma terceira hipótese de homicídio uterino inimputável, ou seja, o aborto eugênico. O Artigo 128 do Código Penal torna inimputáveis o aborto sentimental (estupro) e o aborto terapêutico (risco de vida para a mãe), mas não hospeda a tese “mengeliana” de permitir o aborto de seres humanos malformados.
A meu ver, tal pretensão fere o artigo 5, “caput” da Constituição, segundo o qual o direito à vida é inviolável, e o artigo 2 do Código Civil ao estabelecer que todos os direitos do nascituro estão assegurados, desde a concepção. Que fantástica ironia – se esta ação for julgada procedente – poder a lei garantir todos os direitos, menos o direito à vida! Estaria a legislação contrariando ostensivamente o próprio Tratado Internacional de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, que, firmado para assegurar o respeito aos direitos humanos, garante, no seu artigo 4, o direito à vida, desde a concepção.
Nem se pode alegar que a ação pretende preservar o direito à dignidade humana, ou seja, o direito de eliminar-se um filho no ventre materno, pois o direito do nascituro à vida é o mesmo de seus pais. Raciocínio semelhante fazia Hitler, ao eliminar os deficientes, criando-se, assim, um mundo culto e saudável, na sua doentia visão.
Não há dignidade humana que se obtenha à custa da morte de outrem, principalmente quando, por ser malformado, necessite mais do carinho dos pais, como muitos pais de crianças que nasceram com anencefalia lhes dedicaram até a sua morte.
Enfim, não há civilização que não se alicerce na solidariedade humana, sendo para mim difícil entender que uma das melhores formas de se garantir a dignidade humana é praticar o homicídio de seres humanos no ventre materno, em virtude de sua má-formação. Prefiro continuar defendendo sempre o direito à vida, e não propugnar o direito à morte de seres considerados socialmente inconvenientes.
Dr.Ives Gandra Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Serra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU – [email protected] e escreve quinzenalmente para o Jornal Mundo Lusíada.