HOUSE OF BRASIL – Pior a emenda que o soneto? Por Carlos Fino

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Por Carlos Fino

O presidente Frank Underwood, personagem fictícia da série norte-americana House of Cards, não teria escrito melhor texto. Na sua primeira alocução ao país depois do afastamento de Dilma Rousseff, o chefe de Estado interino do Brasil, Michel Temer, foi perfeito na forma e na substância.

Na forma, porque, ainda que visivelmente satisfeito, preferiu manter publicamente a sobriedade, evitando comemorar para não acirrar os ânimos dos adversários, e observando – do princípio ao fim da sua alocução – um tom de grande serenidade.

Na substância, porque elencou todas as grandes questões com que o país se debate, tendo uma palavra para todos os sectores vitais e apontando desde logo o que se impõe fazer e quais as tarefas prioritárias.

Concretamente, Temer apelou ao “diálogo e conjugação de esforços”, disse ser urgente “pacificar a nação” e pretender para isso formar um “governo de salvação nacional”; falou de “resgatar a confiança” num “clima de harmonia entre os poderes”, reduzir gastos para controlar o défice e relançar o investimento, controlar a inflação e combater o desemprego, prometendo ao mesmo tempo manter os programas sociais herdados dos governos Lula e Dilma (que reconheceu terem “dado certo” nessa área) e fazer reformas “sem pôr em causa os direitos adquiridos”.

Temer chegou mesmo a declarar o seu “absoluto respeito institucional à senhora presidente Dilma Rousseff”, demarcando-se assim das acusações que esta lhe faz de ter conspirado nos bastidores para a sua destituição, colando-lhe a etiqueta de “traidor” e artífice do “golpe”.

Mas se o presidente interino soube escolher os temas certos e encontrar o tom adequado com as palavras exactas, expressando-se com clareza em bom português, em manifesto contrate com as dificuldades oratórias de Dilma – o mesmo não se pode dizer, lamentavelmente, da coreografia. Neste plano, Michel Temer falhou rotundamente, mostrando afinal ser um fraco aluno de Frank Underwood.

Com efeito, depois de um governo recheado de figuras femininas e liderado pela primeira mulher presidente do Brasil, apresentar-se ao país e ao mundo com um executivo só de homens é um erro de casting que pode sair-lhe caro.

O mesmo se pode dizer sobre a composição étnica da nova equipa governamental – só tem brancos, em gritante contraste com a diversidade da população brasileira,  em que os pardos e negros passaram, nos últimos anos, de acordo com o censo de 2010, a constituir  maioria.

Se acrescentarmos a isto a liquidação do ministério da Cultura, indispondo ainda mais a intelectualidade e os meios artísticos em geral, já de si pouco propensos a aceitar a mudança de rumo agora operada – como mostram, por exemplo, os casos de Chico Buarque e Caetano Veloso, que mobilizam opinião desfavorável ao novo governo no mundo inteiro – temos a dimensão da aparente desconexão do presidente interino e dos seus aliados com as novas realidades internas e internacionais.

Afinal, a avaliar por estes dados, e ao contrário do proclamado, estamos muito longe de ter agora no Brasil um verdadeiro governo de união e salvação nacional.

RABOS DE PALHA

A tudo isto acresce uma outra questão crucial – o facto de Temer, embora dizendo apoiar a Lava Jato, ter trazido para o seu governo um conjunto de personalidades que, ou já estão indiciadas ou são alvo de investigações, denúncias e suspeitas, o que lança uma densa sombra sobre a moral do novo executivo e pode, em última análise, comprometer a sua capacidade para concretizar as duras medidas que a situação económica exige.

A situação é tão gritante que a própria direção nacional da OAB, que apoiou o impeachment de Dilma, veio agora a público exigir o afastamento dos indiciados do novo executivo. À mulher de César não lhe basta ser séria – também tem que parecê-lo.

Sejamos claros – boa parte do país está cansada dos anos PT e quer mudar. Cansada – na opinião que consigo colher junto dos meus amigos brasileiros de diferentes quadrantes – do excessivo aparelhamento partidário do Estado, do predomínio da ideologia sobre a eficácia, do descontrolo das finanças públicas, dos juros altos, do desemprego, da inflação e da perda de valor da moeda nacional… Cansada, ainda, da desmoralização trazida pelos sucessivos escândalos de corrupção, da pouco convincente retórica oficial e da falta de capacidade de comunicação da presidente agora afastada.

Por tudo isso, boa parte da população, em particular das classes médias, incluindo daqueles sectores que ascenderam a essa situação nos últimos anos, anseiam por uma viragem que trave a corrupção, aumente a eficácia dos serviços públicos, restabeleça a confiança dos mercados e relance o investimento, recolocando o Brasil numa rota de maior normalidade. Daí a inegável satisfação com que muitos acolheram o afastamento de Dilma.

Mas, nos últimos dias, pôde também detectar que, ao ser confrontada com a coreografia e as primeiras medidas anunciadas pelo novo executivo, muita gente, mesmo entre aqueles que querem mudanças, ficou apreensiva, receando não só que venham aí tempos difíceis de sacrifício, já expectáveis com o governo afastado, mas também que muitos dos avanços sociais dos últimos anos se possam perder, designadamente no plano dos direitos das mulheres e das minorias, das relações com os movimentos sociais e no que respeita ao maior acesso dos pobres, em geral pardos e negros, ao ensino universitário e ainda no que concerne às reivindicações dos índios, por mais fracas e contraditórias que tenham sido as posições do PT nestas matérias.

LEGITIMIDADE DO IMPEACHMENT CONTINUA EM ABERTO

Por outro lado, aos olhos da opinião pública internacional, a questão da legitimidade do impeachment continua em aberto.

Do El País ao Le Monde, do Guardian ao New York Times, passando pelo Huffington Post e a BBC – sucedem-se nos grande media internacionais os artigos de opinião e até editoriais em que se levantam sérias dúvidas sobre a regularidade do processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff. O conservador Economist, apesar de favorável à saída de Dilma, chegou a afirmar que os seus sucessores seriam piores do que aqueles que estavam –antecipando assim que seria pior a emenda que o soneto…

Aos observadores não escapam nem o facto de que muitos congressistas que votaram pelo impeachment na Câmara e no Senado são alvo de processos e já foram mesmo condenados; nem a imprecisão da acusação sobre “crime de responsabilidade” – já que a manipulação das contas é prática generalizada que vem de trás e muitos a ela recorrem ou recorreram, como o próprio relator do processo no Senado – António Anastasia; nem, claro, a inclusão no executivo de personalidades contaminadas pela suspeita de crime.

Não escapa também, na análise dos observadores internacionais, a prática – espúria em regimes democráticos consolidados – de juízes do Supremo emitirem opiniões políticas que comprometem a sua equidade, nem o tratamento desigual a que são submetidas as diferenças lideranças políticas – com manifesta incidência acusatória sobre uns e leniência ou compreensão para com outros.

Este viés, a continuar, pode agora traduzir-se, a qualquer momento, na prisão de Lula. Os sectores mais conservadores não escondem que – por pura vingança e/ou para o impedirem de se recandidatar em 2018 – gostariam de ver ainda o carismático líder operário ser levado algemado sob prisão.  Sendo as coisas o que são, a concretizar-se essa possibilidade, estaria confirmada a iniquidade do sistema, comprovando-se estarmos mais perante uma manobra política do que face a uma medida de simples justiça.

Neste jogo de luz e sombras, os grandes media brasileiros também não saem ilesos, longe disso.

Lula, por exemplo, foi execrado e impedido de assumir a Casa Civil sob pretexto de que estaria a tentar obstruir a justiça; mas agora, os media aceitam com naturalidade que Temer, já tratado como se fosse definitivo apesar de interino, inclua no executivo personalidades sob acusação, conferindo-lhes dessa forma foro privilegiado… Agora, não há escândalo nos media nem nenhum juiz do Supremo emitiu liminar para impedir a posse. Afinal, em que ficamos: dois pesos, duas medidas?

Também não passam despercebidas as afirmações do ministro Gilmar Mendes – que não esconde ser adversário figadal do PT – no sentido de poder vir, na sua qualidade de presidente do Superior Tribunal Eleitoral, a dissociar Temer da responsabilidade conjunta com Dilma, preservando assim ao novo chefe do executivo a sua capacidade para continuar à frente dos destinos do país, evitando o recurso a novas eleições.

No plano político, as contradições também são manifestas – onde antes se fazia grande escândalo porque Dilma queria realizar um modesto ajuste fiscal e recorrer a impostos para equilibrar as contas, hoje aceitam-se como naturais e legitimam-se em termos de opinião as medidas de controlo das finanças públicas anunciadas pelo novo governo, que vão ser tanto ou mais drásticas que as anteriores.

No Parlamento, as mesmas forças que antes recusaram a Dilma a aprovação dessas medidas –chegando até a propor as chamadas “pautas bomba”, com aumento de despesa, numa guerra institucional contra a presidente –  hoje afirmam estar de acordo com mais políticas restritivas!

São estas disfunções – políticas, judiciais e mediáticas – que, todas somadas, levam muitos observadores e personalidades internacionais de diferentes quadrantes a interrogarem-se sobre a legitimidade do processo de impeachment tal como ele surgiu e está sendo conduzido.

Um processo – é o mínimo que se pode dizer – que não vem contribuindo para o reforço da imagem do Brasil no plano internacional. Se, de futuro, o país quiser conservar a ambição de vir a ocupar um lugar entre os grandes do mundo terá certamente de corrigir essas disfunções.

O pior que poderia acontecer seria o Brasil deixar consolidar de si próprio a imagem de um país em que o princípio básico do respeito pelos prazos dos mandatos dos cargos electivos é posto em causa ao sabor das conveniências.

Em processo legal, é certo, uma vez que o impeachment está consignado na Constituição; mas num contexto em que sobressaem questionáveis manipulações políticas, jurídicas e mediáticas, que levam a pensar que o verdadeiro objetivo poderá ser o de obter mudanças de poder à margem do processo eleitoral.

 

Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.

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