Da Redação
Com Lusa
A antropóloga portuguesa Susana Viegas, coordenadora da demarcação das terras indígenas que o Vila Galé pretende ocupar com um resort, afirmou esta quinta-feira à Lusa que a construção poderá destruir uma das maiores fontes de sustento da comunidade nativa.
Em causa está a edificação, por parte do grupo hoteleiro português, de um hotel de luxo numa área de mangue – ecossistema costeiro e úmido presente em zonas tropicais e subtropicais -, onde o povo indígena Tupinambá de Olivença coleta crustáceos.
Apesar do Vila Galé garantir que “não existem indígenas” na zona onde pretende instalar o hotel, no estado da Bahia, Susana Viegas frisa que há vasta documentação que comprova a importância daquele ecossistema para as comunidades em questão.
O diretor do Vila Galé “disse-me que não percebia porque é que aquela zona de mangue estava dentro da reserva indígena, que não havia índios ali a viver. Então expliquei-lhe que na zona de mangue as pessoas vão coletar crustáceos, não se instalam ali a viver. De fato, aquela área tem o único mangue que não sofreu um desastre ecológico irreversível (…) e há documentação desde o século XVIII a falar da coleta de crustáceos por parte daquela população”, evidenciou a portuguesa.
A antropóloga, que dedicou mais de uma década a estudar os Tupinambá de Olivença, e que coordenou um estudo da Fundação Nacional do Índio (Funai) que levou à demarcação daquelas terras indígenas, assegurou que, independentemente do seu modo de vida ou da sua localização geográfica, “todos vão ao mangue, pelo menos, uma vez no ano”, tamanha é a importância daquele bioma.
“Para os Tupinambá de Olivença o mangue constitui uma unidade de paisagem vital para a sua reprodução não apenas física como cultural. Independentemente da localidade onde habitem, aqueles índios praticam e praticaram no passado a coleta de crustáceos no mangue no âmbito de um processo social e cultural próprio e de enorme importância social”, diz o relatório redigido por Susana, acrescentando que a riqueza nutritiva dos manguezais é reconhecida por toda a população que reside naquela região.
Dessa forma, foi com “choque”, que Susana Viegas recebeu a informação de que uma unidade hoteleira portuguesa estaria a pôr em causa aquele ecossistema com o apoio do próprio Governo brasileiro.
Segundo revelou na segunda-feira o portal The Intercept, a Funai recebeu, em julho último, um pedido do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) – órgão vinculado ao Ministério do Turismo do Brasil – para encerrar o processo de demarcação da reserva indígena dos Tupinambá de Olivença, para a construção de um hotel de luxo por parte do Vila Galé.
Quando foi informada da situação, a primeira reação da antropóloga foi entrar em contato com o diretor do Vila Galé, numa tentativa de o sensibilizar e explicar que tinha sido uma portuguesa a coordenar o estudo de demarcação daquelas terras, assim como lhe clarificar o que estava em causa.
Mas, na visão de Susana Viegas, o diretor do grupo, Jorge Rebelo de Almeida, “desqualificou em absoluto” aquele projeto científico, mostrando ainda que estava ciente da situação daquelas terras.
“Foi uma conversa que começou a entrar numa incapacidade de comunicação e que me fez concluir que ele (diretor do Vila Galé) estava muitíssimo ciente de tudo. No entanto, tinha um discurso, tal como tem uma parte da elite da Bahia, de não só de negar completamente a existência de indígenas na região, assim como a legitimidade do processo”, declarou a antropóloga
“O fato de eu ser portuguesa não mudou em nada a opinião que ele tinha, e menos ainda, e isso foi uma das coisas que para mim foi particularmente grave, (…) que é desqualificar em absoluto o trabalho que é feito a nível científico. Falou daquilo como se estivesse a falar de um desenho feito por uma criança”, frisou Susana Viegas, em declarações à agência Lusa.
A investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa frisou que o fato de o Governo brasileiro compactuar, e impulsionar, a construção do hotel, demonstra uma anormalidade no sistema.
“No normal funcionamento das instituições, seria totalmente ilegal sequer imaginar esta situação. A lei diz que a partir do momento em que começa a haver estudos de demarcação – que tiveram inicio em 2003, e em 2004 tiveram um estudo publicado em diário oficial – qualquer pessoa que adquira áreas na região, está a fazê-lo de má-fé”, disse Susana Viegas em entrevista à agência Lusa.
Após a divulgação do The Intercept, o Vila Galé emitiu um comunicado, reafirmando as alegações de que não existem indígenas no local e garantindo que se trata de um projeto “estruturante” para a região e inclui “um grande resort com cerca de 500 quartos, seis restaurantes, centro de convenções e eventos, piscinas”.
O povo Tupinambá de Olivença luta pela demarcação daquelas terras há pelo menos 15 anos, e a primeira fase do processo foi concluída em 2009.