Histórias regadas a saudade e vinho… o legado do Real Centro Português de Santos

Por Helena Fraga

É a saudade que move o povo português… a nostalgia… a sede de desbravar. Não é à toa que a palavra saudade só exista em nossa língua. Sentir falta não traduz verdadeiramente o sentimento e a dor da distância física ou espiritual.
A beleza da raça portuguesa está em singrar mares para fincar raízes. Mas, tudo isso começa sob o comando de Viriato, o herói luso que guerreou contra os romanos pelo espaço conhecido hoje como Portugal. Como nos fala Adriano Augusto da Costa Filho, “o heroico pastor guerrilheiro lusitano ‘Viriato’ que com sua fibra e marca, a marcha definitiva no sangue lusitano, transmitido ao povo português, para a honra e glória do nosso querido e eterno Portugal!”.

Por onde passaram, os portugueses deixaram suas marcas; na verdade ainda deixam, mas, vamos falar um pouco do passado e da cidade de (SP).

No fim do século XIX aproximadamente 70% da população local era composta por imigrantes vindos de além-mar. Homens e mulheres que saíram de várias regiões e que foram os responsáveis pelo desenvolvimento econômico e político da região.

O Brasil vivia tempos de tribulação com guerras e lutas pela Proclamação da República e conflitos com Portugal. Tudo isso dificultava a vida dos imigrantes que, num esforço conjunto, liderados pelo Doutor Manuel Homem de Bittencourt e a nata da sociedade da época fundaram as bases do Centro Português de Santos em sessão solene realizada no dia 1 de dezembro de 1895, no Teatro Guarany.

O prédio em estilo neomanuelino que conhecemos hoje situado a Rua Amador Bueno, 88, só ficou pronto e inaugurado em 1900; é um dos edifícios mais belos da cidade. Cada vez que entro lá lembro-me dos detalhes das visitas que fiz a Tomar e a famosa janela em estilo Manuelino… É impossível não perceber nos detalhes do Centro Português a arquitetura parecida, a grandeza de detalhes e o formato das colunas.

Carinhosamente chamado de CCP ou Centro Cultural de Santos, tem ainda duas das salas mais belas que já vi e um teatro. Mas, não é a beleza do Salão Nobre e seus inúmeros tesouros que acalentam a alma, mas, o sentimento que ela perpetua. A grandiosidade de ver o exemplar dos Lusíadas de 1880 com dedicatória de D. Pedro II ou o piano de cauda de 1876 usado ao início de ocasiões solenes e especiais para recepcionar príncipes e governadores ou saraus repletos de poesia.

Temos ainda o escrutínio – pequeno cofre com relíquias lusófonas – que contém “terra extraída do Castelo de Guimarães –, berço da nacionalidade portuguesa – pedras do Promontório de Sagres de onde o infante D. Henrique vislumbrou as grandes navegações rumo aos descobrimentos e exemplar de ‘Os Lusíadas’” (Centro Português de Santos e seu centenário – 1995).

O aclamado Salão Camoniano é das obras mais belas que a cidade guarda. Com pinturas feitas por João Bernils e Antônio Fernandez representa os cantos dos lusíadas. As paredes em estuque com apliques que parecem um papel de parede adamascado delicado e suave são palco para obras de arte que representam os homens que transformaram o lugar no maior orgulho da comunidade lusa em Santos.

O Salão-teatro foi inaugurado em 1908. Havia também uma companhia teatral da própria entidade. Durante a década de 80 foi alocado para outros fins e recentemente retornou ao Centro Português. Pelas mãos do Sr. José Duarte – atual presidente da entidade – foi totalmente reformado e reinaugurado em 2017 rebatizado como Teatro Armênio Mendes.

Hoje você pode assistir um coral ou uma peça e admirar a arquitetura do local tal como era por ocasião de sua inauguração. Claro que algumas reformas tiveram que ser feitas para uso em nossos dias, mas, nada que possa tirar o brilho do lugar com capacidade para 300 pessoas e com toda infraestrutura necessária.

As histórias do Real Centro Português de Santos – nome dado e autorizado pelo rei de Portugal D. Carlos I em 1896 – remetem aos encontros e eventos cuidadosamente elaborados por um grupo de senhoras, esposas e filhas dos associados. Carinhosamente denominado Grêmio das Camélias foi fundado em 1913 tendo como sua primeira presidente Laura Corte Real. Era comum a promoção de chás dançantes mensais, saraus, concertos e bailes.

Os eventos culturais, literários e recitais contaram ao longo do tempo com personalidades ilustres como Rui Barbosa, Martins Fontes e Vicente de Carvalho.

A beleza da construção é sem dúvida magnífica, mas, as memórias que elas encerram ainda são o que me tocam mais… Uma edificação notabiliza-se por suas obras quando consegue extrapolar os muros de tijolos pelas pessoas que ali concretizam fatos importantes.

Como escritora, lusodescendente e apaixonada por cultura consigo fechar os olhos e imaginar imigrantes atravessando o oceano aportando em Santos e tendo como referência o velho Centro Português.

Os bailes de carnaval com máscaras e fantasias de Pierrot e Colombina que aconteciam no salão camoniano contados por minha mãe ou pela Dona Fátima… Os encontros furtivos de amigos que conheceram suas esposas lá. O clima de glamour que encantava o Centro de Santos – onde tudo acontecia – com mulheres vestidas com requinte e seus chapéus de abas e homens de terno de linho.

Como todo local voltado à cultura, ao longo de quase treze décadas, o Real Centro Português criou e manteve o Orfeão do Centro Português criado em 1950, o Rancho Verde Gaio – mais contemporâneo (1961), porém de elevada importância para expandir o folclore português.

Minhas memórias afetivas teimam em imaginar e sonhar com as histórias vividas no CCP… as festas populares regadas a vinho, chouriço no pão e bailaricos ao som da tocata ou mesmo os encontros mais requintados, como o último em dezembro de 2021 em comemoração aos 126 anos da entidade.

Ainda trago na imaginação as apresentações teatrais ou desfiles de moda ou ainda aos chás bingo promovidos pelas senhoras, tais quais as Camélias dos idos séculos XIX que se empenham em ajudar entidades parceiras do século XXI mantendo a tradição de auxiliar os mais necessitados.

Imagino senhores bem-vestidos de terno de linho branco silenciosos jogando sueca ou jovens moçoilas em busca de um galante senhor para casar-se… Jovens embevecidos com leitura de poesia… crianças correndo pelos cantos e aquecendo o coração enquanto a alma eterniza a cultura luso-brasileira.

Quantas histórias de saudade transformadas em energia para alavancar os negócios que edificaram a cidade… Quantas lágrimas salgadas ora de alegria ora de tristeza pelas perdas de outros patrícios…
Simplesmente…
quanta vida…
pois é ela em sua plenitude que permitiu ao longo de mais de um século edificar raízes e perpetuar memórias.

Se você não conhece o Centro Português de Santos faça-o e sinta em cada cantinho a delicadeza e a fibra dessa gente que ama sua pátria e a carrega no seu coração por onde passa.

Bem Haja!

HELENA FRAGA
Empresária – escritora e mãe lusodescendente

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