Historiadora acredita que crise do Euro trouxe mais portugueses ao Brasil

Por Ígor Lopes
Do Rio para Mundo Lusíada

O presidente da Câmara Portuguesa do Rio, Paulo Elisio de Souza, com a historiadora Renata Santos. Foto: Ígor Lopes.
O presidente da Câmara Portuguesa do Rio, Paulo Elisio de Souza, com a historiadora Renata Santos. Foto: Ígor Lopes.

Renata Santos é historiadora, mestre e doutora em História Social pela UFRJ. Hoje em dia, atua como diretora da Agência Contemporânea de Pesquisa. É conhecida por ser autora, em parceria com Cíntia Carli, do livro ¨A outra margem do Atlântico¨, que foi lançado durante o centenário da Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria. Em entrevista ao Mundo Lusíada, Renata fala sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, explica como esses cidadãos se desenvolveram na cidade maravilhosa e mostra que, no Rio, é fácil encontrar a influência lusitana em cada esquina.

Renata sublinha ainda que, atualmente, os lusitanos que desembarcam por aqui têm um perfil diferente de antigamente. A imigração portuguesa volta a ter como motivação a questão econômica, mas, diferente dos primeiros imigrantes do século XX, o português que vem para o Brasil é, na sua maioria, bem qualificado e com bom nível de instrução. A crise do Euro faz com que mais portugueses se aventurem em terras brasileiras.

Mundo Lusíada (ML): Que aspectos são importantes ressaltar quando se fala da presença de portugueses no Rio?

Renata Santos (RS): São inúmeros os aspectos quando se trata da presença portuguesa no Rio. Mas me parece que um ponto importante de se destacar, por perpassar vários outros, diz respeito à construção do Estado brasileiro. Como capital da colônia, depois do Império e capital da República até 1960, o Rio de Janeiro durante séculos foi um espaço privilegiado de representação política, palco de várias ações de construção simbólica e afirmação desse Estado. Não é à toa que durante muito tempo o Rio foi tomado como uma “vitrine do Brasil”. Durante a colônia, os portugueses que nos trouxeram, mesmo que de forma impositiva, uma forma de organização da vida social, com a transferência da Corte de D. Maria I, em 1808, pra cá vieram todo um aparto efetivo de Estado imperial, que nos tornaram únicos nas Américas. Com a independência proclamada em 1822, passamos a buscar uma identidade que se estabeleceu em oposição à nação portuguesa. Se a língua foi um elemento a ser considerado na manutenção da unidade do Estado imperial, durante um bom tempo precisamos nos referir à ela como o  “português do Brasil” ou o “português brasileiro”, para marcar as nossas diferenças. Ser brasileiro é ser formado do encontro de diversas culturas, a indígena, a africana, a europeia. E, certamente, o que nos faz únicos é exatamente toda essa mistura de referências, da qual os portugueses fazem parte de uma forma quase estrutural.

ML: Que marcos históricos e culturais no Rio podemos destacar em relação à comunidade portuguesa?

RS: A contribuição portuguesa na formação da nossa cultura se verifica de diversas formas. A historiadora Eulália Maria Lobo tem uma importante pesquisa sobre esses legados, que virou um livro clássico, chamado Imigração portuguesa no Brasil. Nesse trabalho, ela analisa a formação de uma cultura luso-brasileira através de uma interação na literatura, no teatro, na cultura operária, no que ela chama de “cultura popular”, na música, na arquitetura e nas artes.

ML: Por décadas, a figura do imigrante português no Brasil ficou marcada por estereótipos. Como está essa situação atualmente e o que mudou, tendo em vista o desenvolvimento da comunidade lusitana por aqui?

RS: De um modo geral, o brasileiro tem sempre uma piada de português para contar! Não tem jeito, faz parte do nosso senso de humor. Em uma novela exibida atualmente em um grande canal de televisão, ainda persiste a figura do personagem português dono de mercearia. Em muitos lares, é ainda comum encontrarmos um membro da família que carrega uma história ligada a esses primeiros anos da imigração. São pessoas idosas, que apesar de estarem há anos no Brasil, ainda preservam um forte sotaque e muitas tradições. Mas ao lado dessas antigas representações, coexistem cada vez mais outras novas. Como exemplo mais evidente podemos citar os trabalhos dos atores Ricardo Pereira e Paulo Rocha, que fizeram um enorme sucesso por aqui, representando portugueses jovens e modernos.

ML: Qual era o perfil do português que vinha para o Brasil antigamente?

RS: A imigração portuguesa para o Brasil teve várias fases. O auge do período migratório se deu entre o final do século XIX e início do século XX, alcançado o seu ápice às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Nesse período, esse imigrante era, em sua maioria, de origem camponesa, vindo das aldeias do norte. Como mostram os estudos feitos pela professora Eulália Lobo, uma parcela desses imigrantes também era composta de artesões, de caixeiros e operários já desligados do campo. Os profissionais liberais e artistas representavam uma parcela mínima desse contingente.

ML: Em que período da nossa história a comunidade lusitana sofreu a sua maior transformação? No passado, portugueses vinham para o Brasil e abriam padarias, pastelarias, açougues e bancas de jornal. Hoje, vemos, no Rio, portugueses empresários, políticos e artistas. Claro que essas mudanças acompanharam a tendência mundial, mas, o que se pode dizer em relação aos portugueses na cidade maravilhosa?

RS: Podemos pensar que entre o início do século XX e o começo deste século XXI, a imigração portuguesa passou por três grandes fases. Na primeira, como já falamos, representada pela figura do português mais desfavorecido, de baixa instrução, e que vinha em busca de novos horizontes econômicos. Um segundo momento pode ser marcado pela conjuntura política de Portugal após a Revolução dos Cravos, em 1974. Imigrar, nessa época teve um sentido mais político e menos econômico, trazendo para cá muitos empresários e profissionais liberais. A última grande onda de imigração se dá agora, diante da crise do Euro. A motivação volta a ser econômica, mas, diferentemente daqueles primeiros imigrantes do início do século XX, o português que quer vir para o Brasil é, em geral, bem qualificado e com bom nível de instrução.

ML: Que legado a comunidade portuguesa deixa aqui no Brasil ou no Rio neste momento?

RS: Diante dessa última onda migratória, considero muito cedo falarmos de um legado. Muita coisa mudou ao longo desse último século, não só o perfil do imigrante português, mas do próprio carioca, além das condições sociais, políticas e econômicas da cidade e do Brasil como um todo. Particularmente, o Rio de Janeiro vive um momento especial. A realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olímpiadas de 2016 colocam a cidade novamente na mira dos grandes empresários. Os investimentos públicos também voltaram, com os governos fazendo importantes obras de infraestrutura, fundamental para que a cidade volte a crescer de forma sustentável. Estar no Rio hoje é um privilégio. Não é exagero dizer que o mundo todo está de olho em nós, favorecidos pela boa fase da economia brasileira. É um grande desafio, portanto, saber ocupar e manter um lugar na cidade nesse momento. Um aspecto importante a se tratar nesse ano de Portugal no Brasil e vice-versa, é que dos anos 1990 para cá, podemos falar de uma “redescoberta” de um país pelo outro. O ex-embaixador Luiz Felipe Lampreia trata muito bem desse assunto, ao dizer que esse “achamento” dessa vez foi recíproco e bilateral. Apesar de ainda haver muito que ser feito em termos de política de Estado, buscando-se acordos multilaterais mais amplos e programas de cooperação que viabilizem ainda mais as relações econômicas e culturais entre Brasil e Portugal, há, entre os dois países, um sentimento de familiaridade e a pretensão de uma certa naturalidade nas relações. Nesse sentido, é fundamental que cuidemos não só das variantes econômicas, mas também dos aspectos sociais envolvidos nesse processo, uma vez que as particularidades linguísticas, históricas e culturais desses dois países são igualmente relevantes para se fortalecer as relações luso-brasileiras.

ML: Pode detalhar a participação dos portugueses na fundação da Câmara Portuguesa no Rio. E porque essa Câmara é a mais antiga do mundo? Para além da data de fundação, há algum aspecto que faça com que essa instituição tenha essa longevidade?

RS: A Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria do Rio de Janeiro foi a primeira Câmara desse tipo a ser criada por portugueses fora de Portugal, em 16 de setembro de 1911. Como hoje, naquele início do século XX o Rio ocupava uma posição privilegiada, podendo se destacar ainda as intensas relações comerciais entre Brasil e Portugal. Nesse sentido, a escolha da cidade para abrigar uma câmara de comércio que representasse os interesses da comunidade portuguesa que aqui vivia foi uma decorrência natural. Nesse momento, o Rio ainda era a capital da República, sede, portanto, das decisões políticas, maior centro bancário e econômico do Brasil, além de ser a cidade onde teve início o processo de industrialização. A presença portuguesa no Rio era maciça. O censo de 1920 revelou que eles eram 75% da população estrangeira na cidade, contingente que representava 40% do total de portugueses no Brasil. A longevidade da Câmara, portanto, se explica pela força das relações comerciais entre os dois países e pela importância simbólica que a cidade do Rio de Janeiro sempre teve nessas relações. Conhecer a história da Câmara de Comércio do Rio é conhecer uma parte do desenvolvimento socioeconômico dos dois países. Ao longo desses 100 anos de existência da Câmara estão os altos e baixos desse processo. É uma relação tão imbricada – Câmara, cidade, portugueses, desenvolvimento – que hoje a Câmara Portuguesa do Rio de Janeiro toma para si os mesmos desafios vividos pela cidade, a partir da possibilidade que ela tem de atuar como uma mediadora privilegiada. Qual o futuro da cidade e qual o papel dos portugueses nesse futuro é uma questão que depende do comprometimento dos que estão envolvidos nessa história.

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