Garoto, gênio luso descendente

Centenário de Nascimento de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto

São Paulo na primeira metade do século XX era uma urbe que crescia em ritmo acelerado. Central para o financiamento da cultura cafeeira, carro chefe da economia brasileira no período, recebia milhares de novos habitantes, migrantes de outros Estados ou gente do exterior, que para ela convergiam em busca de melhores oportunidades de vida em seu mundo fabril e comercial. Tinha, em 1910, algo em torno de 350 mil habitantes. Ficava atrás apenas do então Distrito Federal. E foi, nesta cidade, que os portugueses Antônio Augusto Sardinha e Adozinda dos Anjos Sardinha, resolveram se estabelecer. O casal chegava com quatro filhos. E, aqui, ainda teriam mais três rebentos. O quinto da sequência foi Aníbal, que não passaria despercebido pela história.

O menino Aníbal Augusto Sardinha nasceu no dia 28 de junho de 1915 na Vila Economizadora, uma área operária fundada em 1907, bairro da Luz, junto ao rio Tamanduateí e a atual linha férrea da CPTM, vizinho do Brás e do Pari. Desde pequeno, apesar das dificuldades financeiras, ele conviveu com um ambiente cheio de musicalidade. Seu pai tocava guitarra portuguesa e dois dos irmãos mais velhos também eram instrumentistas. Assim, seu dom musical encontrou um terreno fértil para o florescimento. Descobriu a paixão cedo e jamais parou seu ânimo. Observando o ambiente doméstico, começou a tocar banjo e acompanhar seus familiares. Sentia claramente que a música era sua sina.

No início dos anos 1920, a pulsante cidade já atingia os 580 mil habitantes. Paulicéia desvairada e modernista. Nesse contexto, em meio aos apitos de fábricas, aos automóveis que se multiplicavam e a eletricidade que espalhava a luz incandescente da Light pelas vias públicas principais, em novembro de 1923, surgia a radiodifusão local. Estreava a Educadora Paulista, vindo a seguir a Rádio Clube de São Paulo, em junho de 1924. Iam se abrindo, aos poucos, os portais de uma nova era para as comunicações e para a música. Enquanto isto acontecia, Aníbal já era conhecido como ‘O Moleque do Banjo’, participando de alguns grupos, animando festividades e reuniões, chorando na garoa.

Em uma entrevista para o Jornal Correio Paulistano, dez/ 1949, ele se recorda do período: “Em 1929, no Palácio das Industrias, tive minha primeira oportunidade, tocando com Canhoto, Zezinho e Mota, para um programa da General Motors. Éramos um grupo grande. Tempos depois, formamos uma orquestra, com uniforme, gravatinha preta e calça de flanela, e depois comecei a tocar sozinho; e com o falecido Pinheirinho Barreto e Aluisio Silva formamos um novo grupo. Foi quando gravamos Zombando da Morte, um samba que se tornou muito popular.”

Paraguassú, nome artístico de Roque Ricciardi, seresteiro nascido no Belenzinho, conhecido como “O Cantor das Noites Enluaradas”, pioneiro do rádio local e que tomou parte nos cinco primeiros filmes falados brasileiros, teve também importância no início da carreira profissional do ‘Moleque do Banjo’, convidando-o para apresentações junto ao seu conjunto Verde e Amarelo. O adolescente tomaria participação igualmente no grupo liderado por Raul Torres, outro astro do rádio, o Chorões Sertanejos, tendo a oportunidade de excursionar pelo interior. Algumas biografias falam que Capitão Furtado, cantor e compositor, sobrinho de Cornélio Pires, o pioneiro nas gravações de discos caipiras, foi outro nome que esteve ao lado do guri em suas incursões primárias no meio artístico.

Dentro deste período, de virada para a década de 1930, junto com Serelepe, o moleque Aníbal iria gravar duas faixas para o selo Parlophon, liderado artisticamente por Francisco Mignone. Foram “Bichinho de Queijo” e “Driblando”, dois maxixes em duo de banjo e violão, de própria lavra. E ainda participaria da Orquestra Bertorino Alma, anagrama de Alberto Marino, maestro e violinista, autor da valsa “Rapaziada do Brás”. Seu talento era algo evidente e começava a se destacar no cenário artístico da metrópole bandeirante.

Em meio a todos estes fatos, iniciaria amizade e parceria com o violonista José Alves da Silva, o Aimoré, com quem durante bom tempo atuaria em dupla ou em formações maiores apresentando-se em teatros, circos e estúdios de rádio, como a Record, a Educadora Paulista e a Cosmos. Nesta última, integrou o conjunto regional de Hudson Gaia, o Petit, ao lado de Aimoré, Atílio Grany e Pingo. Por sugestão de Jaime Redondo, diretor da emissora, no final de 1934, deixaria a alcunha Moleque do Banjo para ser anunciado daí adiante como Garoto, alcunha que funcionava melhor para alguém já adulto, embora de estrutura física franzina como a sua. Aliás, ele também há algum tempo já se apresentava tocando não apenas o banjo, mas, também violão, bandolim, cavaquinho, guitarra havaiana e, uma novidade, o violão tenor, adaptado ao triolian estadunidense, tornando-se uma sensação em sua execução.

Apesar de tocar vários instrumentos com destreza, estudar era importante para Garoto. Em 1933 tornou-se aluno de violão do professor Atílio Bernadini, considerado o introdutor no Brasil “da primeira escola de violão baseada no método de Tárrega”. E ele também frequentou depois as salas do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, com prof. João Sepe, estudando teoria musical, harmonia e composição.

Em 1935, com Aimoré, Petit e outros ases, viajou em caravana para o Paraná. A imprensa de Curitiba o chamou de ‘Instrumentista nº1 do Brasil’, tamanho o impacto do que realizou nos palcos locais. Foram a Porto Alegre e ainda a Buenos Aires. No ano seguinte, a dupla Garoto & Aimoré venceu o preconceito do caboclinho Silvio Caldas, astro vindo do Rio para se apresentar com outros artistas em São Paulo. Duvidando da qualidade de ambos inicialmente, teve que se curvar ao ouvir os dois, acabando por convidá-los a seguir viagem até a baixada santista, onde prosseguiria sua excursão. O resultado deste fato foi que, pouco depois, Garoto & Aimoré estavam convidados a tocar na Capital Federal. Mais precisamente, na importante Radio Mayrink Veiga. Lá, apresentando-se entre grandes cartazes como Francisco Alves, Carmen Miranda, Noel Rosa e Ciro Monteiro, encontraram um outro paulista que firmava seu nome no cenário fluminense: o exímio violonista Laurindo de Almeida. Bem recebido e cheio de boas oportunidades, o Rio de Janeiro passou a ser uma opção sedutora para Garoto.

Voltando a São Paulo, participou da formação da Orquestra Columbia do maestro Gaó, do Grupo Parajá e pilotou o seu próprio programa na Rádio Cruzeiro do Sul: “Garoto e Seus Instrumentos”. Em 1938, acompanhou e fez gravações com o sambista Moreira da Silva pelo selo Columbia. E também decidiu se casar. Desposou a jovem Dugenir de Castro, com quem se mudaria pouco tempo depois para o Rio de Janeiro, em Braz de Pina, indo trabalhar na Rádio Mayrink Veiga, carregando projetos na mala. Nessa emissora destacam-se os duos com Laurindo de Almeida e as várias gravações com estrelas da música brasileira, como Alvarenga e Ranchinho, Jararaca, Dorival Caymmi e Ary Barroso, entre outros. Tê-lo como músico acompanhante era garantia de registro em alto nível. Porém, se as coisas já estavam bem encaminhadas assim, elas ainda iriam ficar melhores: o Tio Sam brevemente conheceria Garoto e aplaudiria seu virtuosismo e inventividade.

Em setembro de 1939 o planeta via explodir a Segunda Guerra Mundial, conflito que se iniciou na Europa e espalhou-se depois pela África, Ásia e Oceania durando seus horrores até 1945. Mas, independente das tensões geopolíticas entre as potencias imperialistas, no mês de outubro daquele ano, junto com Carmen Miranda e o Bando da Lua, todavia, com contrato próprio, Garoto desembarcou com todas as suas armas nos EUA para uma arrasadora série de shows por uma vasta parte do território estadunidense. Incluindo, diga-se, uma apresentação na Casa Branca para o presidente Roosevelt. Além disto, tocou no Canadá, gravou na Decca e fez apresentações para o cinema. A imprensa chamou-o ‘Mr Marvelous Hands’. Em 1940, as estrelas nacionais após conquistarem a América do Norte, voltaram juntas ao Brasil para um descanso. Porém, Garoto desistiu do retorno para a Meca da indústria do entretenimento. Causou espanto para muita gente. Todavia, os motivos eram plausíveis. Divergências com o empresário de Carmen Miranda, que queria incorporá-lo de vez ao Bando da Lua, coisa que não era intento do paulistano da Luz, e também por conta de testemunhar várias manifestações de racismo contra sua esposa Dugenir, que era negra, ao longo de suas viagens pelo território norte-americano. Assim, enquanto os demais retornaram no fim do repouso para o show business ianque, Garoto preferiu tocar seus dias adiante faturando em mil-réis mesmo.

Entre várias atividades, em 1941, tomou parte em um filme carnavalesco, “Céu Azul”, com outros nomes do rádio e do disco. Desenvolveu o grupo Garoto e seus Garotos, contando com Poly (Ângelo Apolônio), violão e cavaco, Cordeiro ao violão, Russo do Pandeiro e Reis no vocal. Com o violonista Poly também participou das primeiras gravações de Luiz Gonzaga, pela Victor. No final de 42 tocou na Rádio Nacional com Carolina Cardoso de Meneses e atuou na orquestra da emissora, regida por Radamés Gnattali, em um importante momento de sua carreira, quando tomou parte de vários programas, tocando solos ou em grupo, além de trabalhar em duo com José Menezes, alternando instrumentos de cordas entre si. Realizou muitas viagens, se apresentando em teatros e cassinos, até que estes foram proibidos por Dutra em 1946.

Em 1949 Garoto retorna a São Paulo, contratado pela Rádio Record, onde ficaria menos de um ano. Conheceu na Paulicéia o violonista e pesquisador Ronoel Simões, nascendo daí amizade entre ambos. Simões era detentor da única gravação de “Gente Humilde” com o próprio Garoto, para violão solo em Sol Maior, entre outros documentos sonoros particulares. Voltou ao Rio e fez discos para a Odeon, sendo recontratado pela Rádio Nacional. Nesta ocasião, passou a se apresentar com o violonista e cantor Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeon, cujo encontro iria resultar no famoso Trio Surdina. Depois, com a saída de Lemos, houve a chegada de Zé Menezes, mantendo o brilho e o sucesso do conjunto.

Em 1952, enquanto Garoto aprofundava seus estudos violonisticos, atuou como solista junto a Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional, liderada pelo Maestro Leo Peracchi. Interpretava a primeira audição do “Concertino nº 2”, dedicado a ele pelo maestro gaúcho Radamés Gnattali. Posteriormente, em 53, Garoto voltou a solar frente a uma orquestra. Desta feita foi a Sinfônica do Teatro Municipal, dirigida pelo maestro Eleazar de Carvalho. Apresentou o “Concertino nº 2 para Violão e Orquestra”, de Radamés, sendo elogiado pelo público e crítica. Novos rumos musicais se abriam para o gênio Garoto, cada vez mais envolvido no universo erudito em suas interpretações e composições.

Apesar da sofisticação que vinha construindo, em 1953 compõe com Chiquinho do Acordeon o dobrado “São Paulo Quatrocentão”, gravando-o com uma bandinha brejeira. O disco despretensioso alcançou a vendagem de 700 mil cópias, mantida como recordista por muito tempo na história fonográfica nacional. Foi o maior sucesso de sua carreira magnífica, que ainda deixou outras composições como “Duas Contas”, “Amoroso”, parceria com Luis Bittencourt, “Estranho amor”, com David Nasser, “Vamos acabar com o baile”, com José Brandão, “Nick bar”, com seu amigo e comediante Zé Vasconcelos, “Amor Indiferença”, com o amigo Mário Albanese, “Tristezas de um violão (Choro triste nº 1)”, “Lamentos do Morro”, “Desvairada”, “Meditando” e a já citada “Gente Humilde”, que recebeu letra póstuma de Chico Buarque e Vinícius de Moraes.

Trabalhando intensamente e cheio de planos para o futuro, sonhava em poder voltar aos EUA para estudar e tocar. Contudo, o destino foi cruel. Em 03 de maio de 1955, aos 39 anos e 11 meses, um infarto fulminante colocou ponto final em sua existência, para desespero de sua segunda esposa Ceci, familiares, amigos e inúmeros fãs. Porém, ainda assim, ele foi gentil, deixando a todos interessados em musica de qualidade uma obra rica, desafiadora, intensa e semeadora de novos rumos. Sua data de nascimento, 28 de junho, tornou-se o Dia Estadual do Choro em São Paulo.

Na obra de Irati Antonio e Regina Pereira, “Garoto – Sinal dos Tempos”, publicada pela Funarte em 1982, autores que avaliam o músico ‘uma ponte entre o tradicional e o moderno’, lê-se o depoimento de um emblemático bossanovista e mestre de muitos violonistas, o compositor Carlos Lyra. Ele diz: “[Garoto] não foi só o artista insuperável, mas também amigo e professor de toda uma geração, inclusive eu mesmo. Frequentei sua casa na Rua Constante Ramos e um dia quando dedilhava seu violão – enquanto ele jantava – me ouviu atentamente e disse que eu tinha talento e que portanto me ensinaria. E de graça. Este músico transitava em todas as áreas da música, com incrível virtuosidade. Com isso podem imaginar que influência teve, não só na minha, como na formação da música moderna deste país – inclusive na maneira diferente de tocar samba – aproveitada por João Gilberto”.

Para o exímio cearense Zé Menezes, que tocou com Garoto na Rádio Nacional, a história do violão no Brasil tem duas fases bem distintas: “até os anos 50, era uma coisa. Tinha uma maneira bem mais simples. O Garoto modificou completamente a maneira de tocar. Ele já nasceu bossa nova”.

O jornalista e bandolinista mineiro Luis Nassif, comentando sobre a obra de Garoto, em seu entendimento, pai musical do bandolim e do cavaquinho brasileiro, explica: “Garoto era virtuose em qualquer instrumento de corda. Embora tenha revolucionado o violão, com suas composições e seu modo de tocar sem as unhas, seu talento maior era nos instrumentos que usavam palheta (banjo, cavaquinho, violão tenor e bandolim). Isso era admitido pelo maestro Radamés Gnatalli.  Alguns anos atrás, recebi de presente uma fita de Garoto ao bandolim interpretando o choro “Dinorá”. Todos os recursos que Jacob utilizaria a partir de fins dos anos 50 até a sua morte – que aprimoraria, que desenvolveria- estavam ali, sintetizados em uma única faixa de Garoto. […] O acervo do IMS tem seis solos de Garoto ao bandolim e mais alguns ao cavaquinho. As gravações vão de 1946 a 1949, pouco antes de Waldir Azevedo estourar com “Delicado” e bem antes de Jacob dar seu grande salto de qualidade, no final dos anos 50.  Pesquisei as faixas, cliquei na música e, do alto-falante do computador, vieram os sons de Waldir Azevedo. Mais que isso, veio um Jacob inteiro, completo, os mesmos sons, a mesma sequência, os mesmos recursos e, em alguns casos, as mesmas músicas… só que gravadas dez anos antes, e por Garoto. Nem se tire o mérito do mestre Jacob. Seu brilho maior está em seus cinco últimos LPs. Desses, os três primeiros são Garoto puro.”

Sujeito discreto, amigo, solícito e bem humorado, sempre se manteve equilibrado, não se deslumbrou com os aplausos das autoridades ou de seus mais ilustres colegas do jazz, da música erudita ou do choro, participando de discos, rádio, cinema e, até, da televisão que estava começando. Inquieto, virtuose sem empáfia, foi sempre um verdadeiro estudante de seus instrumentos. Aníbal Augusto Sardinha, luso-brasileiro, o molequinho do banjo. Sintomaticamente nasceu no bairro da Luz: jamais deixou de ser um garoto iluminado.  São Paulo, 24 de junho de 2015. Mês Estadual do Choro.

 

Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo

1 comentário em “Garoto, gênio luso descendente”

  1. JORGE CARVALHO DE MELLO

    Prezado Prof. José de Almeida Amaral Júnior.

    Apreciei deveras seu instrutivo artigo.
    Escrevi a biografia “Gente Humilde, vida e música de Garoto”, lançada pelas Edições SESC SP, em 2012 e sou um dos organizadores e autor dos textos dos “Choros de Garoto”, em co-edição SESC SP/Instituto Moreira Salles.
    Grande abraço,
    Jorge Mello.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *