Da Redação com Lusa
Mário Cruz fotografou edifícios devolutos que “há demasiado tempo” servem de abrigo a pessoas em Lisboa e vai expor o resultado para, nos 50 anos da revolução que derrubou a ditadura, “exigir” que se cumpra Abril.
“Roof” é o nome do novo projeto (exposição e livro) do fotojornalista Mário Cruz, que teve como mote o direito a uma habitação digna, inscrito na Constituição.
Nos últimos dez anos, Mário fotografou com regularidade prédios, fábricas, escolas que têm em comum o facto de estarem devolutos.
O fotógrafo, distinguido com dois World Press Foto, quis revelar “o lado escondido da crise de habitação” e exigir a resolução do problema.
“Se a Constituição garante habitação digna para todos, se calhar é tempo de cumprir. E o 25 de Abril deveria obrigar a esse cumprimento”, considera.
A pedido da Lusa, Mário Cruz escolheu três pontos no seu mapa alternativo da cidade, “muito diferente” do que orienta os turistas.
A primeira paragem faz-se num local “simbólico” de como “o Estado falha todos os dias”: em frente ao Palácio de Belém, Mário Cruz lembra que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, assumiu o desígnio de “terminar com os sem-abrigo na cidade”.
Acontece que, nas costas da sua residência oficial, “há pessoas que não têm um sítio para viver” e que ocupam edifícios devolutos, lado a lado com condomínios privados.
“Trabalham, mas não conseguem de forma alguma pagar a renda de uma casa ou comprar uma casa”, descreve, realçando: “Estas pessoas são sem-abrigo, simplesmente não as vemos nas ruas.”
A segunda etapa transporta-nos para a zona de Chelas, onde um caminho de terra ladeado por flores coloridas desemboca numa quinta do século XVIII.
A roupa estendida faz prova de vida no edifício entaipado, cujo muro esboroou tanto desde que Mário o fotografou, em abril de 2014, que até a placa onde se lia “Câmara Municipal de Lisboa” caiu.
Nessa altura, com 63 anos, o “senhor Gomes” – rosto do cartaz da exposição – perdera o emprego e encontrara ali um “teto improvisado […] permanentemente em risco de colapsar”, ao qual acedia através de um escadote.
Mário distingue três momentos na década que fotografou: a crise financeira de 2013/2014, que se pensava temporária, a esperança da retoma em 2019/2020 e o “ponto de rutura” atual.
“Voltei a alguns dos sítios em 2023 e as pessoas permanecem […], porque têm uma dificuldade tremenda em arrendar uma casa na capital portuguesa”, constata.
Não longe dali, em Marvila, uma escola industrial do Estado Novo serve de abrigo a dezenas de pessoas.
As dimensões do edifício, com capacidade para 850 alunos, são impressionantes. Sobre vidros e telhas partidas, percorrem-se as alas que albergaram cursos profissionais de mecânica, eletrónica e outros.
A escola, desativada em 2010 para deixar passar a Terceira Travessia do Tejo (por fazer), continua de pé, ainda que em avançado estado de degradação, mas soube-se este mês que a demolição vai mesmo para a frente.
Atualmente, vivem ali, há mais ou menos tempo, “trabalhadores comuns, pensionistas, […] alguns imigrantes”, descreve Mário, que destaca o simbolismo de se chegar aos 50 anos da Revolução e haver “uma escola ainda do tempo do Estado Novo a albergar filhos do 25 de Abril”.
Aos 59 anos, João faz de duas divisões o seu lar, com porta e tapete. Lá dentro, uma cama, uma mesa, três cadeiras. Na parede, o plantel do Benfica ao lado de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima.
No que fotografou, registou “a tentativa” dos residentes de darem “alguma dignidade” aos espaços onde vivem: “As pessoas tentam transformar estes sítios em […] verdadeiras casas.”
Oriundo de Cabo Verde, João chegou a viver na rua antes de, há quatro anos, se instalar na antiga escola, onde diz que encontrou um “bom ambiente”.
Na ala onde está vivem “umas 15 pessoas” e cada uma tem o seu fogão, numa cozinha improvisada, que dá “para fazer pitéu”. Para o resto, João tem de ir “no meio do mato” e recorrer aos balneários públicos.
“A vida tramou-me”, lamenta João, nos minutos de conversa com a Lusa, cuja presença atraiu a polícia, que faz por ali rondas regulares.
É na antiga escola que Mário refere a “questão” que lhe faz “muita confusão”: os devolutos do Estado.
“É quase incompreensível como é que, durante tanto tempo, […] nunca houve um investimento sério ao nível de habitação pública e de aproveitamento de muitos destes edifícios que, de certeza absoluta, conseguiriam dar uma casa digna e muitas pessoas”, critica o fundador da associação Narrativa.
A última etapa do percurso é o Antigo Recolhimento das Merceeiras, edifício no coração de Lisboa que a Santa Casa da Misericórdia cedeu para expor “Roof”.
Situado na zona da Sé, onde são visíveis os contrastes entre apartamentos sobrelotados com migrantes e os ‘tuk tuk’ que serpenteiam o destino turístico número um da Europa, o edifício permitiu a Mário conceber uma exposição imersiva, que vai transportar os visitantes para o ambiente dos locais fotografados.
“Quem visitar esta exposição terá que realmente procurar as fotografias, da mesma forma que muitas vezes eu procurava as pessoas nestes locais e vai ter que entrar em diferentes casas e em cada casa vai ver uma peça de toda esta história”, explica.
Simultaneamente, o fotógrafo pretende mostrar que “é muito fácil cair” nesta dura realidade.
“Basta não ter o apoio familiar que se calhar muitos de nós temos, basta perder um emprego, basta o contrato de arrendamento não ser renovado e facilmente caímos numa situação de ter que encontrar um teto improvisado”, alerta.
A exposição “Roof”, com entrada livre, será inaugurada no dia 27, às 15:00, e ficará patente até 09 de junho.