Quando acabaram as apurações em 26/10 e Dilma Rousseff confirmou o resultado obtido 21 dias antes, durante o primeiro turno, ela se tornava então a primeira mulher presidente do Brasil a conseguir uma reeleição. E levou por uma diferença de 3,5 milhões de votos, um Uruguai de apoiadores a mais que seu oponente. Marcava também um significativo dado: o período mais longo de permanência da democracia na forma republicana de governo no país. Fato histórico. Mas, nem bem o TSE – Tribunal Superior Eleitoral comemorava a conclusão de seus trabalhos, as redes sociais como Facebook, WhatsApp e Tweeter manifestavam um espantoso movimento golpista, preconceituoso, xenófobo e separatista pela derrota sofrida por parte dos tucanos e dos extremistas de direita que se incrustaram entre eles. Criou-se um absurdo clima tenso.
Como uma praga, registrou-se com intensidade textos agressivos contra os nordestinos, subitamente acusados de ‘responsáveis’ pela reeleição da presidente petista. Por exemplo, portal do jornal Tribuna do Ceará, região que concentrou o maior número de votos de Dilma, nordestinos foram chamados de “ignorantes”, “trouxas” e “miseráveis” para ficar nos termos mais leves das ofensas, inundadas de palavrões. O portal Ig falou que o surto preconceituoso anotou idéias como “Povo burro que vive de esmola”, “Povo que é vergonhoso”, “Escoria de vagabundos” e por aí vai. Após o primeiro turno, no Portal UOL, o ex-presidente FHC, do PSDB, afirmara “O PT está fincado nos menos informados, que coincide de ser os mais pobres. Não é porque são pobres que apoiam o PT, é porque são menos informados”. O portal Ig, em 7/10, noticiou que uma comunidade da internet denominada ‘Dignidade Médica’, com algo em torno de 100 mil usuários envolvendo médicos, estudantes e professores da área, pregou “castrações químicas” contra nordestinos e propuseram um “holocausto” contra os eleitores de Dilma. Em 3/11, conforme portal G1, um médico anestesista gaúcho postou em seu Facebook sobre desistência de uma viagem que faria a um congresso em Pernambuco: “Não piso nesta terra de merda mais em toda a minha vida!”; tudo porque Dilma venceu no Estado. Entre os paulistas, que apresentou Aécio (PSDB) recebendo 15.296.289 votos enquanto Dilma (PT) recebeu 8.488.383 dos votos válidos, recrudesceu um espírito separatista, o ‘São Paulo Livre’, pela “ética do trabalho” onde o Estado é mais que um lugar, é um “estilo de vida”.
A ira contra a reeleição e o espírito fascista ressuscitado empolgava seus pares. Pelas redes sociais foi organizada manifestação a favor do ‘impeachment’ de Dilma baseado na tese da ‘corrupção do PT’ e no seu ‘desejo de perpetuação no poder’, um partido cheio de ‘comunistas, querendo transformar o país em uma nova Cuba’. Ao mesmo tempo, o PSDB pediu auditoria nas urnas, ao TSE, alegando que os seus eleitores questionavam a lisura do pleito.
Segundo a Folha de São Paulo, em 1º/11, 1500 manifestantes compareceram à caminhada na Av. Paulista (dados da PM) que foi aberta às 14 hs com a saudação: “boa tarde, reaças”. Entre os vários discursos, o eleito deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSC-SP) disse que se seu pai tivesse virado presidente ele “fuzilaria Dilma”. Outras passeatas contra a reeleita foram registradas ao longo do país. Segundo a Folha: 350 pessoas em Brasília, 100 em Curitiba e 50 em Manaus. Por sua vez, o TSE acatou o pedido de auditoria pelos tucanos, porém, alertou: “verifica-se que a pretensão do partido político, tratada com certo estardalhaço em notas divulgadas à imprensa, se constitui em nenhuma inovação ou solicitação que já não tenha sido previamente garantida por este Tribunal, na forma prevista nas resoluções editadas, com grande antecedência em relação à data das eleições”.
A OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, em 27/10, repudiou firmemente todas as manifestações preconceituosas contra nordestinos, pobres e negros, registradas nas redes sociais.“O Brasil é uma nação plural, tolerante e respeitosa. Essas manifestações preconceituosas contra nordestinos e nortistas advêm de uma minoria e merecem ser repudiadas pela sociedade brasileira” afirmou o presidente Marcos Coelho. E estimulou aos cidadãos brasileiros, se alguém se sentir ofendido ou testemunhar atos de preconceito, pode entrar com uma representação no Ministério Público Federal. Não é possível se tolerar racismo e xenofobia no país. A Constituição Federal proíbe discriminações.
Quanto ao golpismo e o pedido de ‘impeachment’ de Dilma, no dia de finados, o ex-deputado federal, ex-gabinete do governo FHC, participante da campanha de Aécio, o paulista Xico Graziano escreveu em sua página no Facebook “nascemos [os tucanos] inspirados na socialdemocracia europeia, com viés da esquerda. Nossa origem reside no MDB autêntico, que foi decisivo na derrubada da ditadura militar.” […] “quem concordar com as teses dessa turma aguerrida que vê o comunismo chegando, é contra os benefícios sociais, sonha com a ordem militar, por favor, deixem o PSDB. Vocês é que estão no lugar errado”, sentenciou. Na tarde de terça feira, o candidato derrotado Aécio, voltando ao trabalho no Congresso, comentou: “Respeito a democracia e qualquer utilização dessas manifestações no sentido de qualquer tipo de retrocesso à democracia terá a nossa mais veemente oposição.” Vale destacar que entre domingo e segunda feira, 26 e 27/10, lideres mundiais já parabenizavam a petista pela conquista, casos de Ângela Merkel, Vladimir Putin, Cristina Kirchner, a chancelaria francesa e Barack Obama, que chamou de ‘vitória histórica’.
Os exaltados que não sabem perder também demonstram falta de capacidade de cálculo. Somente os votos válidos nordestinos não permitiriam a reeleição. Matemática simples. Entre os paulistas ela teve, como falado, 36% dos votos. No sul foram 6,3 milhões de votos (40%) e obteve a maioria em Minas e no Rio de Janeiro. No norte e nordeste Dilma obteve 24,8 milhões de votos, enquanto no Sul e Sudeste foram 26,7 milhões. Sem o nordeste ela não venceria; mas, sem o sudeste e o sul ela perderia. As regras da eleição consideram o todo e não pontos específicos. Legítima e sem fraudes.
Todo este reacionarismo revela a insensatez do preconceito social e também os efeitos da ignorância. Esta é uma sociedade multicultural, resultado de um processo de colonização e da posição ao longo de muito tempo como país periférico dentro do sistema internacional. A elite conseguiu controlar as possíveis transformações, mantendo-se confortável em sua posição, diferente do que ocorreu, por exemplo, na Europa em meados do século XIX, onde as revoluções, as transformações políticas acabaram por gerar sociedades mais equilibradas. Aqui, esse forte controle exercido, levou à permanência das desigualdades sociais, construídas historicamente com base na exploração econômica, violência e escravidão, que gerou um modo de pensar e agir desiguais.
Assim, por exemplo, o Programa Bolsa Família, qualificado como ‘fonte de manutenção da pobreza, de estímulo à vagabundagem, mera esmola’ etc. tem no poderoso e laborioso Estado de São Paulo a segunda maior demanda no país pelo serviço. Só perde para a Bahia. E de acordo com o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o programa Bolsa Família tem um dos menores custos entre os chamados programas de transferências sociais e é o que tem o maior efeito multiplicador sobre a economia. Os gastos com o Bolsa Família representam apenas 0,4% do Produto Interno Bruto, mas cada R$ 1 gasto com o programa movimenta R$ 2,4 no consumo das famílias e adiciona R$ 1,78 no PIB. Portanto, ele não é meramente eleitoreiro, sendo inclusive destacado pela ONU. E defendido, inclusive, pelo PSDB.
Sobre a corrupção e a luta pela ‘perpetuação no poder’ não precisamos ir longe. Vamos lembrar, por exemplo, os próprios adversários dos petistas. Em São Paulo seguem para sua terceira década no Palácio dos Bandeirantes. Os manifestantes não lembram dos tucanos nessa crítica. Nem faltando água. E o PSDB, com várias experiências de gestão desde sua fundação, é um partido apontado em muitos processos de corrupção. Em São Paulo, o Caso Alston e o Caso Siemens com o Metro/CPTM: são centenas de milhões de reais de prejuízos para os cofres públicos, conforme a Revista Istoé. E o ‘Mensalão’ que começou em Minas, mas só se fala no período lulista? Pela denúncia do Ministério Público, o caso iniciado em 1998 com o governador Eduardo Azeredo ultrapassa o desvio de R$ 4 milhões. Mensalão mineiro que foi pioneiro até agora não foi julgado. E a emenda da reeleição? FHC em 1997 também pagou premio para passar no Congresso a emenda. Os jornais noticiaram compra de votos para aprovação da matéria. Ficou famoso o ‘grampo’ sobre deputados do PFL-Acre onde eles comentavam receber R$ 200 mil cada um pelo apoio a FHC. As denuncias cresceram, contudo, o procurador geral da República, Geraldo Brindeiro, as engavetou, ganhando também a sua permanência no cargo. Entre tantas outras histórias mais. E se formos falar de outros partidos como o PMDB, o DEM, o PP, o PTB vamos observar também quantos ‘fichas sujas’ existem. Aliás, há um dossiê conhecido do MCCE- Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, pesquisa entre os anos 2000 e 2007, que apontam os partidos mais corruptos, entre outras coisas. Vale dar uma conferida em http://www.prpa.mpf.mp.br/institucional/prpa/campanhas/politicoscassadosdossie.pdf Corrupção, seja de petista, de tucano, de pmdebista, precisa ser punida e ponto final. Dado curioso: mesmo com o registro de candidatura indeferido pelo TSE, o deputado federal Paulo Maluf (PP/SP) obteve 250,81 mil votos e ele seria reeleito como o oitavo candidato mais votado pelos paulista. “Rouba, mas faz”, batem no peito seus eleitores.
Em síntese, todo este cenário revela como o povo brasileiro ainda precisa melhorar muito sua consciência cidadã para se transformar em uma nação verdadeiramente democrática, sem desequilíbrios brutos e com integração que estabeleça um sentido coletivo de progresso, benéfico a todos e não a apenas alguns segmentos, alguns setores sociais privilegiados. Quando a Casa Grande & a Senzala estiverem plenamente apagadas de nosso dia a dia, será mais difícil proliferar epidemias de ódio e preconceitos. Assim, temos muito a fazer e a ficar alertas. E não custa lembrar com referência ao regime democrático: ruim com ele, bem pior sem ele. São Paulo, 7 de novembro de 2014.
Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo