O momento vivido pelos EUA, um dos mais tensos de sua contemporaneidade política, é fértil em simbolismos, não apenas pela possibilidade de a maior democracia do planeta vir a dar um calote nos credores externos (coisa ainda inimaginável), mas porque põe no centro do debate a missão dos atores políticos no seio das democracias modernas. Impressiona o fato de os Partidos Republicano e Democrata, deixando de lado o papel desempenhado pelo país na textura das nações, parecerem inclinados a continuar uma luta esganiçada pelo poder e a depositar na cesta do lixo a célebre lição de John Kennedy: “Não pergunte o que a América pode fazer por você, mas o que você pode fazer pela América”. Mesmo que se chegue a um acordo sobre o limite da dívida do governo federal (aumento além de US$ 14,3 trilhões), a crise aponta para o ocaso de uma era, na qual a representação política, ante a ameaça de catástrofe, esquecia divergências partidárias e se dava as mãos pela salvaguarda do bem comum. Os partidos já não acendem aquela chama de civismo que tanto maravilhou Alexis de Tocqueville, há 180 anos, quando o jovem advogado de 26 anos foi enviado pela França para estudar o sistema penitenciário estadunidense.
Descrevia ele, na obra A Democracia na América: “Os grandes partidos são instrumentos que se ligam mais a princípios que a suas consequências, às generalidades que aos casos particulares, às ideias e não aos homens”. A queda de braço entre as duas estruturas que se revezam no poder e o duelo verbal entre o presidente Barack Obama e o presidente da Câmara, John Boehner, mostram que a balança dos pesos e contrapesos está quebrada. A política refunda-se sob a égide do salve-se quem puder. O altruísmo, valor tão enaltecido pela democracia norte-americana, cede lugar ao pragmatismo; o fervor social esfria, basta ver a avaliação negativa que a população confere ao presidente Obama, aos dois partidos e aos líderes. Sob essa teia de tensões, os EUA ingressam na segunda década do século 21 com a imagem de liderança no painel das democracias planetárias em franco processo de declínio. Quais as razões para tal mudança de paradigma? A principal causa aponta para a alteração da fisionomia política na sociedade pós-industrial. A política deixa de ser missão para se tornar profissão, desvio que ocorre na esteira do desvanecimento das ideologias. Ademais, o motor econômico, principalmente na moldura da globalização, passou a movimentar a máquina política, como se aduz dos atuais embates que se travam nos EUA e na Europa. Ideários e escopos doutrinários perdem substância. Tornam-se apêndices da economia. É esta que torna viável a eficácia de governos.
Dito isto, cabe indagar: como essa “nuvem de disfunção” (é assim que alguns analistas veem a crise norte-americana) afeta países como o Brasil? Ora, o fio desse rolo já chegou até nós há muito tempo. Ou o Brasil não tem nada que ver com a prática da intransigência, do impasse político e da polarização entre situação e oposição? A lupa sobre nosso modelo mostra que, por aqui, a política não dá trégua aos competidores. A gana pelo poder é tão desmesurada que os climas eleitorais se intercambiam. O panorama da eleição seguinte é divisado tão logo a paisagem anterior acomoda os eleitos em seus cargos. Não há interstício entre uma urna e outra. Quem não enxerga, por exemplo, que o teatro do pleito de 2012 já está montado? Ou que o palanque das eleições gerais de 2014 já passou a ser usado por um matreiro cabo eleitoral disposto a energizar o País? A presidente Dilma nem bem completa sete meses e uma lista de pré-candidatos já está pronta para disputar o seu lugar. Nos espaços governativos de todas as instâncias, programas e projetos, mesmo os mais abrangentes, comportam ações de cunho eleitoreiro. Políticas de longo prazo, nem pensar. O Brasil é o território do “aqui e agora”, fato que motiva o megaempresário Jorge Gerdau a fazer o alerta sobre, por exemplo, nossa política cambial: “Se é só pela visão financeira, do fluxo de capital, nós poderíamos deixar como está, porque a situação é cômoda a curto prazo. Mas, numa visão estratégica de longo prazo, é preciso ter políticas de desenvolvimento industrial, ter emprego de qualidade e não depender apenas de commodities e do minério”.
A ausência de estratégia de longo prazo deriva da efervescência eleitoral que impregna o ânimo dos conjuntos. Como nos EUA, por aqui não se abre espaço para a busca de consenso entre blocos de um lado e de outro a respeito de temáticas relevantes. A disputa obedece a uma lógica que Thomas Hobbes cunhou de política de golpes preventivos: A teme que B ataque e decide atacar primeiro, mas B, temendo isso, quer se antecipar, fazendo que A, pressentindo o golpe, tente reagir, e assim por diante. O ataque não abriga armas de destruição ideológica (até porque as ideologias estão no fundo do baú), mas movimentos táticos.
Nem mesmo nosso sistema de coalizão partidária resiste à “política de emboscadas” que as entidades procuram engendrar para ganhar mais fatias de poder. Cada uma parece cobiçar o espaço da outra. A polis é um detalhe.
Gaudêncio Torquato
Jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação. Twitter: @GaudTorquato