Mudanças na política interna afetam perfis socioeconômicos e razões de brasileiros que decidem mudar, diz doutora em Geografia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Por Crisley Santana
Do Jornal da USP
Dados do Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração, da Organização Internacional para as Migrações (OIM), demonstram que houve aumento no número de brasileiros em casos de extrema vulnerabilidade que pediram ajuda para regressar de Portugal em 2022.
Para Aline Lima dos Santos, doutora em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo, o fluxo de brasileiros que migram para o país está em transformação. A formação de mitos com relação ao que é estar em um país estrangeiro faz parte do perfil de quem viaja com poucos recursos financeiros e de informação.
Como estava o fluxo migratório entre Brasil e Portugal na época em que você fez sua pesquisa de doutorado? Qual o perfil dos brasileiros que migravam?
Os brasileiros sempre superam os portugueses, até porque o nosso volume de pessoas é maior. Portugal é minúsculo. Os portugueses que vêm, por mais que seja em número menor, representam impacto do ponto de vista da população portuguesa. Estamos falando de um país que passa por várias crises. Inclusive, uma crise demográfica. As pessoas em Portugal são mais idosas. A pirâmide etária de Portugal é bem diferente da nossa, tem poucas crianças e poucos jovens. Eles passam por uma crise demográfica que tem impacto sério do ponto de vista da previdência e do mercado de trabalho.
Os brasileiros vão para lá na expectativa de ocupar esses lugares nos quais a população não está preocupada em ocupar. Ver pessoas saindo de Portugal é muito impactante do ponto de vista da população portuguesa como um todo. Não é um fenômeno trivial, embora esse processo de emigração faça parte da história portuguesa. Isso acompanha Portugal desde que ele se fundou enquanto nação, enquanto estado territorial.
Em relação à época do meu doutorado, defendi em 2016. Fiz doutorado-sanduíche e estive em Portugal de 2013 a 2014. Nesse processo, estava aquele boom do Brasil lá fora. Existia uma imagem bem positiva do Brasil. Isso, é claro, impacta tanto os brasileiros que vivem lá como os portugueses. A justificativa dos portugueses para vir passava de alguma forma por isso.
Essa conjuntura mudou muito um ano depois que eu defendi o doutorado: Dilma cai, Temer entra, depois Bolsonaro e vem uma pandemia. O fato é que a vida no Brasil e a dos brasileiros no exterior deteriora muito.
Internamente a inflação se torna muito mais complexa de administrar; a qualidade de vida da população cai demais; existe um contexto de pandemia que torna fluxos mais difíceis; as passagens internacionais se tornam muito mais caras; o dólar aumenta demais. Existe toda uma conjuntura que torna a viagem para o exterior muito mais restrita do ponto de vista do acesso de classes sociais.
O perfil em 2015 era assim: tinha uma população classe média baixa, uma classe econômica que estava ganhando dois ou três salários mínimos e que conseguia viajar. Quando entra Bolsonaro, essa classe já não alcança mais. Só alcança a custo de muita dívida, muita ajuda. Há uma rede social envolvida. Esse fluxo não para, mas ele diminui. Muda-se o perfil porque o acesso fica mais difícil, mas também há uma série de pessoas que estão muito incomodadas com os rumos do Brasil. Pessoas de uma classe média alta.
O que teria mudado nesse fluxo de lá para cá e por que os brasileiros têm sido adeptos da imigração, ainda que despreparada?
Isso também faz parte dessa conjuntura. É uma população que vê o Brasil piorando e vai ficando angustiada com isso. Há violência aumentando também. Eu não vi os dados, isso é uma impressão, mas, por exemplo: você anda no centro de São Paulo e percebe mais população de rua. A impressão que se tem é de maior insegurança. A classe média mais privilegiada, de profissionais autônomos, como médicos e advogados, começa a migrar com recursos próprios. Fazem investimentos, sobretudo, em imóveis em Portugal; abrem negócios no país. Levam a sua lógica de vida daqui. Geralmente essas pessoas já eram donas de escritório, donas de apartamento próprio. Então elas deixam isso aqui e vão para lá construir uma vida de forma muito rápida porque têm recursos financeiros para isso.
Isso tem uma série de impactos em Portugal no mercado imobiliário e nos preços dos serviços. Se vê que a população brasileira lá muda de perfil. Antes eram mais mulheres de classe média baixa que iam para Portugal por motivos laborais, com objetivos de trabalhar, construir a vida ali e conseguir dinheiro. Talvez voltar. Em outros casos, ficar e levar os filhos que ficaram… Esse processo, em um segundo momento, transforma-se em famílias inteiras. Pessoas com recursos maiores, que compram apartamentos. Há maior número de crianças brasileiras entrando nas escolas em Portugal.O país, então, vai adaptando suas leis e o modo como vai recebendo os brasileiros ao longo desse processo.
Hoje eu diria que temos um terceiro momento, que é um momento em que talvez os fluxos de brasileiros indo diminua um pouco e que o perfil anterior comece a ir de novo. O dólar está baixando e, daqui para frente, a gente espera e talvez se concretize que a situação socioeconômica do País, de uma maneira geral, melhore e isso permite acesso a passagens aéreas, por exemplo, e a outros custos.
Existe dentro de tudo isso pessoas que são preocupadas em pesquisar, em se dedicar a criar um plano migratório com mais cuidado, se informando. E tem gente que vai confiando em redes sociais, em relações que já existiam no Brasil ou que são construídas com outras pessoas via internet. Se informam mal, vão e precisam de ajuda para voltar. É um tema que ainda precisa ser estudado. Eu não estou dedicada completamente a ele, então eu posso te dar só esse panorama, que é muito genérico.
A emigração segue sendo fator determinante na sociedade portuguesa. Como isso pode impactar a chegada dos migrantes brasileiros que desconhecem essa realidade?
Eu não acho que isso impacte diretamente. A gente precisa pensar sempre no perfil do português que emigra, que sai de Portugal, e no perfil do imigrante que está entrando. Eu não sei se existe exatamente uma relação muito clara entre eles. Talvez seja o caso de avaliar um pouco melhor.
Portugal é uma sociedade, como eu disse, em que a população é majoritariamente adulta e está crescendo cada vez mais o número de idosos. É uma sociedade que recebeu, desde que entrou na União Europeia, muita ajuda financeira, investiu bastante em educação. Há temas que para eles são resolvidos. Por exemplo, o acesso à educação. Eles têm uma população muito menor; têm estrutura educacional muito maior. Então é muito mais fácil que as pessoas em Portugal consigam galgar anos de estudo maiores que os brasileiros que chegam lá, por exemplo.
Entre os portugueses que migram é muito comum vermos que tiveram acesso à educação, que têm formação superior e que vão para outros países trabalhar em postos de trabalho que oportunizam a inserção deles no mesmo patamar de formação que eles tiveram. Um caso clássico disso são profissionais da saúde portugueses que atuam no Reino Unido. Isso não significa que não exista o caminhoneiro português que faz trajetos via rodoviária para a Alemanha, por exemplo. São pessoas de formação social mais baixa.
De modo geral, quando falamos, por exemplo, nos portugueses que vieram para o Brasil, eles eram ligados às artes, à construção civil, como engenharia e arquitetura. Não eram pedreiros. Há essa diferença.
Entre os brasileiros que estão indo para lá, há muitos que vão estudar. Mais ou menos 10% da população brasileira lá entrou com visto de estudos. É significativo. Também vão muitos formados, mas também pessoas só com ensino médio, sem formação. Essas pessoas que vão com o ensino médio ou sem formação se inserem, sobretudo, nas áreas de cuidado com idosos. As mulheres, em coisas relacionadas à beleza: manicure, cabeleireiro. Há muitos homens e mulheres também ligados a serviços de restaurante, hotelaria, serviços.
Você vê que o perfil é bastante diferente. Imigração é um tema envolto a mitos. Há pessoas que falam: “a vaga deixada por um imigrante será ocupada por outro”. Não necessariamente, porque podem ser perfis muito diferentes. São imigrantes específicos para ocupar mercados específicos, para fins específicos. E isso tem a ver com o modo como a sociedade recebe essa questão.
No meu trabalho, eu chamava isso de “imaginação geográfica” e “hierarquias geográficas”. Quando pensamos no mapa múndi, é um pouco inevitável valorizar alguns lugares por alguns aspectos em detrimentos de outros. Essa imaginação é transferida para as pessoas. “Ah, já que você é brasileira o seu papel, seu lugar social, o seu lugar geográfico é determinado”. O grande desafio do migrante é subverter essa lógica ou usá-la a seu favor. Isso muda muito de sociedade para sociedade.
O que eu consigo responder em relação a essa questão é: não há uma correspondência. Existe um mercado muito específico que o mercado de trabalho português oferece para os brasileiros, o que pode facilitar ou dificultar determinadas áreas de formação dessas pessoas. A população brasileira que vive lá, como eu disse, é composta de dois perfis de momentos distintos, mas que convivem. Esse perfil é dinâmico e está em mudança.