Por Cavaco Silva
Eu tive o privilégio de conhecer Nelson Mandela, inquestionavelmente um dos maiores estadistas do século XX.
Em 1993, veio a Lisboa, tive com ele uma longa reunião e, depois, almoçámos os dois, em S. Bento, juntamente com outras pessoas.
Falámos sobre o desmembramento do apartheid de forma pacífica, sobre a transição da África do Sul para uma democracia multirracial, falámos do entendimento que ele tinha estabelecido com o Presidente da República Frederik De Klerk, falámos sobre a guerra civil em Angola e em Moçambique. Falámos sobre a Comunidade Portuguesa da África do Sul. Nelson Mandela era, em 1993, um homem muito otimista quanto ao futuro da África do Sul.
Agradeceu-me o apoio dado por Portugal à sua libertação e à libertação de outros presos políticos. Agradeceu-me o apoio de Portugal à transição pacífica da África do Sul para uma democracia multirracial.
Nelson Mandela estava informado sobre as posições de Portugal e sobre as minhas próprias posições na União Europeia.
Em 1987, eu tinha escrito uma carta ao Presidente da República da África do Sul, o Senhor Pieter Botha, pedindo a libertação de Nelson Mandela. Penso que o portador foi o Dr. Durão Barroso.
O Presidente da República da África do Sul reagiu muito mal a essa minha carta. Houve uma certa tensão entre os dois governos. Não foi nada simpático na sua resposta.
Depois, em 1988, Pieter Botha veio a Lisboa, para uma reunião comigo. A reunião correu muito mal. Foi uma reunião de uma grande tensão, precisamente porque Portugal insistia muito sobre a libertação de Nelson Mandela e de outros presos políticos.
Mas o homem que faz a viragem que permite a libertação de Mandela e o fim do apartheid foi Frederik De Klerk. Eu penso que fui o primeiro líder europeu que recebeu De Klerk depois de ele anunciar a sua candidatura a Presidente do Partido Nacionalista e a Presidente da República da África do Sul.
Em 1989, veio a Lisboa falar comigo. Não era ainda Presidente da República, era apenas Ministro da Educação. E, aí, disse-me: “Se eu for eleito, eu libertarei Nelson Mandela”. E cumpriu. Voltou a Lisboa mais duas vezes, como Presidente da República, para falar comigo. Falámos várias vezes ao telefone, criámos relações de amizade, de tal forma que quando deixámos os lugares de governo, continuámos a encontrar-nos. Veio a Lisboa encontrar-se comigo, mais do que uma vez. Encontrámo-nos em Londres.
A partir dessa altura, Portugal passou a defender, no seio da União Europeia, o Presidente De Klerk. Lembro-me de várias reuniões que tive com outros Primeiros-Ministros, dizendo “Este é o homem que devemos apoiar, porque é ele que vai libertar Nelson Mandela e os outros presos políticos e pôr fim ao apartheid”.
Não foi fácil. Havia um grande ceticismo dentro da União Europeia quanto à capacidade de De Klerk para fazer a mudança na África do Sul.
Mas Portugal insistiu e, lentamente, os meus colegas de então, Primeiros-Ministros, foram percebendo que era preciso apoiar De Klerk.
Ele enfrentou mesmo o referendo da comunidade branca, que queria afastá-lo de Presidente da República porque estava a negociar com o ANC.
Nessa altura recordo-me bem dos telefonemas que trocámos, e do apoio que forneci a De Klerk.
Eu participei, talvez, em mais de uma dezena de Conselhos Europeus onde se discutiu a libertação dos presos do ANC e a transformação da África do Sul numa democracia multirracial.
Portugal teve sempre uma posição inequívoca. Portugal esteve sempre contra, sempre contra, a luta armada, como aliás Nelson Mandela vem depois claramente afirmar. Quando ele esteve comigo em Lisboa disse: “Sou contra a violência. Eu sou contra a luta armada. Eu defendo a reconciliação e o diálogo”. E Portugal era claramente contra a luta armada. Porque, ao lado, tínhamos a guerra civil de Angola. Do outro lado, a guerra civil de Moçambique. E uma outra guerra civil na África do Sul significava incendiar toda a África Austral.
E quem sofria? Não apenas os cerca de quatrocentos mil portugueses que estavam na África do Sul. Seriam os negros mais pobres da África do Sul que iriam sofrer. Portugal foi sempre contra a luta armada, porque sabia bem que isso conduziria a um incendiar de toda a África Austral.
E uma das conversas que eu tive com Nelson Mandela foi precisamente como pôr fim à guerra civil de Angola e à guerra civil em Moçambique.
E, dai, a minha grande satisfação por ver Mandela, de forma clara, agradecer a Portugal, por termos sempre tido uma posição coerente, de diálogo, reconciliação, mas contra a violência.
Ele sublinhou várias vezes, nessa longa reunião que tivemos e durante o almoço: “Eu não quero violência, daí o meu entendimento com Frederik De Klerk”.
O que devemos reter, principalmente neste momento, é que Nelson Mandela foi um dos maiores estadistas do mundo. Um homem de grande coragem política, de grandes qualidades humanas, que defendeu o compromisso, o diálogo e a reconciliação, e se opôs à guerra armada e se opôs à violência. É um grande exemplo para todos no mundo.
E, por isso, prestamos, justamente, uma grande homenagem àquele que foi, penso eu, um dos maiores estadistas do século XX.
Por ANÍBAL CAVACO SILVA
Declaração do Presidente da República de Portugal a propósito da morte de Nelson Mandela, 7 de dezembro de 2013.