Especial 200 anos: Dona Maria I, a Piedosa enlouquecida

 ESPECIAL 200 ANOS
PARTE VIII 

Por Eulália Moreno
Especial para Mundo Lusíada

 

Patrick Wilcken em “O Império à Deriva”

“Em seguida veio a mãe de dom João, em seus 73 anos, a Rainha Maria I, mulher que havia enlouquecido bem mais de dez anos antes e era propensa a surtos repentinos e irracionais. Dizem que, quando sua carruagem corria para as docas de embarque no Tejo, ela teria gritado: “Não vá tão depressa, pensarão que estamos fugindo!” Ao chegar ao porto, ela se recusou a descer da carruagem, obrigando o comandante da frota real, num deslize momentâneo de decoro palaciano, a retirá-la em pessoa do veículo, carregá-la pelo cais e depositá-la como um fardo a bordo da galera que aguardava”.

 

 

 

Maria Francisca Isabel Josefa Antonia Gertrudes Rita Joana, Princesa Maria da Beira, Duquesa de Bragança, Rainha Maria I de Portugal e dos Algarves D´Aquém e D´Álém Mar em África e finalmente Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, nasceu em Lisboa em 17 de Dezembro de 1734 e faleceu no Rio de Janeiro a 20 de março de 1816.

Dentre quatro irmãs era a filha mais velha do Rei dom José I e de dona Maria Ana Vitória de Bourbon, Infanta de Espanha e ficou conhecida, para os portugueses, como “A Piedosa” ou “A Pia”, devido à sua extrema devoção religiosa. Para os brasileiros, como “A Louca”.

Casou-se, em 1760, com seu tio, Pedro de Bragança, Pedro III, irmão mais novo de dom José I e tiveram sete filhos, quatro homens e três mulheres, dos quais apenas três sobreviveram à primeira infância: José nascido em 1761 que casou em 1777, com a sua tia, irmã de sua mãe, a Infanta Maria Benedita de Bragança e faleceu aos 27 anos, de varíola; João Maria José Francisco Xavier de Paula Luis Antonio Domingos Rafael de Bragança, o futuro dom João VI e Mariana Vitória nascida em 1768 que foi casada com o quarto filho do rei Carlos II da Espanha, Gabriel de Bourbon, e faleceu em 1788.

Em 13 de maio de 1777 dona Maria tornou-se a primeira mulher a ocupar o trono de Portugal, sucedendo ao pai, dom José I, um rei fraco que tinha delegado a Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, a tarefa de governar.

Inteligente e culta, ela gostava de literatura, música e pintura. Falava latim e francês. Era educada no trato e requintada no gosto. Não era considerada uma mulher fisicamente atraente com os seus olhos pequenos e grande nariz mas os portugueses a recordam como uma mulher doce e melancólica que os governou durante 15 anos realizando grandes reformas no sistema econômico, social e educacional do país.

O seu primeiro ato como Rainha, dando início ao período que ficou conhecido como a “ Viradeira”, foi soltar os presos políticos, muitos deles sem julgamento, e fazer regressar os exilados e desterrados, vítimas da política de Pombal. Cerca de oitocentas pessoas foram postas em liberdade, num estado andrajoso e debilitado. O passo seguinte foi afastar o despótico, anti-clerical e perseguidor de jesuítas, Marquês de Pombal, obrigando-o ao exílio em sua própria casa e a proibição de se aproximar da Corte.

Na definição do historiador Oliveira Martins, “a Rainha era a maior beata que a educação jesuítica criara no decurso de quase três séculos”. Por todo o Reino murmuravam-se terços e havia santos por todos os cantos, em oratórios e nichos, com velas e lâmpadas acesas. O seu fervor religioso era de uma natureza tão impressionável que quando ladrões entraram em uma igreja e espalharam hóstias pelo chão ela decretou nove dias de luto, adiou os negócios públicos e acompanhou, a pé, com uma vela, a procissão de penitência que percorreu as ruas de Lisboa. Opositora do luxo e da depravação dos reinados anteriores, gastou quantias exorbitantes em obras religiosas, música sacra e festas religiosas.

No Castelo de São Jorge fundou, em 1790, a Casa Pia de Lisboa presidida por Pina Manique. Ali eram recebidas crianças pobres, órfãs e abandonadas tornando-se no primeiro estabelecimento de educação popular e de amparo a menores. Para sanar as dificuldades financeiras da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fundada no século XV pela Rainha dona Leonor, e dos Hospitais Reais de Enfermos e Expostos, instituiu em 18 de novembro de 1783 uma loteria anual, nos moldes das que ainda hoje existem em todo o mundo, cujos lucros beneficiam, até hoje, aquelas instituições de assistência hospitalar.

Pagou também os quinze anos de salários em atraso dos empregados do palácio e dos soldados. Os presos passaram a ser tratados com mais humanidade e ordenou que nenhum criminoso poderia ficar mais do que cinco dias no castigo da “solitária”.

Para o Brasil foi menos “Pia” e mais “Impiedosa”. Foi ela a Rainha que instituiu, em 1765, a “derrama”, a cobrança de uma cota mínima de ouro em Minas Gerais independente da produção obtida. Foi esse o gatilho que, em 1789, disparou a Inconfidência Mineira e também foi ela quem condenou à morte Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, enquanto atenuava a mesma condenação atribuída aos outros conjurados para prisão perpétua. Preocupada em retomar as rédeas da economia colonial, promulgou a 5 de janeiro de 1785, um alvará impondo pesadas restrições a atividade industrial no Brasil e estabeleceu a cobrança de elevados preços pelos produtos importados como tecidos, sabão, calçados, instrumentos de trabalho e armas que estavam proibidos de serem produzidos na colônia.

Com a morte do marido em 1786, a Rainha dona Maria I começou a apresentar sintomas de declínio mental e em 1788 o quadro se agravou com as mortes da filha Mariana Vitória e de José, este porque a mãe, nos seus caprichos de devota não permitiu que lhe fosse ministrada a vacina contra a varíola, recentemente descoberta. Enquanto ainda estava de luto, eclodiu a Revolução Francesa, provocando-lhe surtos paranóicos, um deles em público durante uma apresentação de teatro em Lisboa.

Cabeças rolavam na França e cabeças se perdiam na Inglaterra e em Portugal com ambos os monarcas, George III e Maria I sendo tratados pelo mesmo médico, o padre Francis Willis. Enquanto George era capaz de falar ininterruptamente durante 19 horas e engolir a comida sem mastigar, os desatinos de dona Maria tinham uma conotação mais religiosa. Quebrava crucifixos, insultava os seus confessores, tinha visões repetidas do diabo espiando em todos os cantos e, obcecada com as penas eternas que o pai estaria sofrendo no inferno por ter permitido a Pombal perseguir os jesuítas o via como “uma massa calcinada de cinzas, sobre um pedestal de ferro derretido negro e horizontal”.

Depois que um incêndio destruiu a Barraca Real, um palácio de madeira provisório e que era utilizado enquanto se construía o Palácio da Ajuda, a Família Real mudou-se para Queluz, palácio que tinha sido construído por dom Pedro III, marido de dona Maria I. Os gritos da Rainha ecoavam pelos corredores frios e escuros e seu filho, dom João é nomeado Príncipe Regente em 1799.

Depois de dezesseis anos de reclusão, a Rainha saiu de Queluz para embarcar no “Príncipe Real” rumo ao Brasil onde invariavelmente vestida de seda preta, num infindável luto pelo marido e pelos filhos, continuaria a ver o diabo, desta feita escondido atrás do morro do Pão de Açúcar.

3 comentários em “Especial 200 anos: Dona Maria I, a Piedosa enlouquecida”

  1. Luísa V. Paiva Boléo

    A vacina da varíola só foi descoberta pelo inglês Edward Jenner em 1796 e reconhecida pela comunidade médica em 1798. Assim é mentira que Dona Maria I deixasse morrer o filho e herdeiro do trono que faleceu em 1788. É favor repor a verdade. A rainha não está cá para se defender.

  2. Como foi responsável pela derrama se ela só começou a reinar em 1777 e a derrama foi em 1765? Que poder tinha ela nesse tempo para isso?

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