ERIC HOBSBAWN

Que me recorde, a primeira vez que eu o encontrei foi numa das salas do prédio da Faculdade de Economia da PUC-SP, na Rua Monte Alegre, bairro de Perdizes. Isto no princípio dos anos 1980. Tempos em que o mundo estava dividido pela Guerra Fria. Falava-se em corrida armamentista, mísseis interbalísticos, ‘star wars’, CIA X KGB entre outros quetais vindos da luta capitalismo e socialismo. O país vivia um momento de distensão, pois a ditadura militar iniciada em 1964 estava agonizando, com problemas econômicos e pressões civis pela retomada dos direitos democráticos. “Anistia ampla, geral e irrestrita” para apaziguar ânimos. As pessoas usavam fichas para falar nos orelhões fixados nas calçadas, mandavam cartas pelo correio para os amigos e conhecidos, punham LPs para tocar nas pick-us dos aparelhos 3 em 1 e a Portuguesa de Desportos nem passava perto de cair para a segunda divisão. Um outro mundo.

A vida acadêmica também era bastante diferente. Ainda havia, sem dúvida, um gosto pelo estudo enquanto tal. Pela busca do conhecimento. Uma paixão em aprender. Palestras de convidados vindos de outras universidades do país ou mesmo de fora lotavam os auditórios. As pessoas iam para ouvir, refletir e se manifestar. Debatia-se tudo. Era preciso pensar. Ler, refletir, agir. Freqüentar diretórios estudantis, núcleos partidários, reuniões de movimentos populares. Claro, além dos shows dos artistas alternativos, cantores, poetas, atores teatrais. Vontade de fazer coisas. De participar. A vida estava se abrindo. Ir para a faculdade não era, como pode se notar, apenas um caminho de preparação para o mercado de trabalho. Era também uma questão de aperfeiçoamento pessoal, de exercer cidadania. Nesta época cruzei com Eric Hobsbawn. E me encantei com aquela figura magra e intelectualizada. Um sábio.

Minha primeira incursão cerebral mais profunda havia sido com o livro clássico de Celso Furtado (1920 – 2004) – outro personagem marcante – chamado “Formação Econômica do Brasil”, publicado pela Cia. Editora Nacional, capa marrom e letras brancas. Uma obra de 1959. Trabalho que rendeu mais de trinta edições por aqui e versões em muitos idiomas diferentes. Analisou cinco séculos para tentar decifrar as raízes dos problemas para nosso desenvolvimento. História e economia. Um livro que, sem dúvida alguma, me incentivou a fazer o bacharelado em Ciências Econômicas. Uma das sementes plantadas desde o Colégio Estadual Casimiro de Abreu, quando não tinha barba na cara ainda.

Para os universitários o primeiro ano era de ‘curso básico’. Fosse para medicina, arquitetura, psicologia, letras ou economia, qualquer um, tínhamos todos que ter fundamentos em comum, calcado nas disciplinas de metodologia científica, comunicação e expressão, antropologia, psicologia e PFTHC, isto é, Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo. E, claro, tudo isto mais uma matéria inicial do seu curso propriamente dito. No meu caso, Economia I, onde líamos “Os Pensadores”, editora Abril Cultural, volumes de Adam Smith e Karl Marx. Textos dos autores para começar. Foi nesse caldo rico que cruzei com Hobsbawn.

Não consigo precisar com firmeza se foram volumes de “História do Marxismo”, em que ele organizou série de artigos de vários intelectuais sobre o tema, se foi “Revolucionários: Ensaios Contemporâneos” (1973) ou ainda um dos volumes lançados lentamente no famoso trio “A Era das Revoluções” (1962), “A Era do Capital” (1975) e “A Era dos Impérios” (1987). O fato é que, entre os objetos do desejo de meus primeiros salários, um deles foi comprar estes livros para ir aproveitando pouco a pouco. Ao longo das viagens de ida e volta nos ônibus, da Vila Guilherme até a universidade. Em cinco anos deu para ler muita coisa nesse trajeto, apesar dos sacolejos. Aliás, em 1994, Hobsbawn ainda publicou “A Era dos Extremos – O Breve Século XX”, fechando esse bloco de ‘eras’, iniciado nos anos 60. Cada era/momento na história contemporânea estudado com seu valor próprio, seus sentidos e conteúdos específicos encadeados. Os movimentos da ascensão revolucionária do capitalismo até sua posição burguesa conservadora. As lutas de classe, o papel dos trabalhadores, dinâmicas e conflitos da história. Beleza de trabalho.

Eric John Ernest Hobsbawm nasceu em Alexandria, a 09 de Junho de 1917, durante o protetorado inglês no Egito. Seu pai era britânico e sua mãe austríaca. Quando tinha dois anos de idade mudaram-se para Viena. Mais tarde, ainda, foram para Berlim. Quando Hitler chegou ao poder em 1933 o rapaz deu o fora da Alemanha com a família, que tinha raízes judias, dirigindo-se para Londres, onde permaneceriam em definitivo. Estudou em Cambridge. Deu aulas na Universidade de Londres e na New School for Social Research, em Nova Iorque, entre outros locais. Aos 14 anos já estava afiliado ao Partido Comunista, na Alemanha. Um humanista de verdade. Falava várias línguas, viajou o mundo e era grande apreciador das artes. Seus livros transbordavam erudição. Um ardoroso fã de jazz. Publicou, inclusive, “História Social do Jazz”, editado aqui pela Paz e Terra, vasculhando suas raízes, implicações sociais e econômicas de músicos e público, desse gênero formidável, surgido na virada para o século XX dentro dos EUA e que se espalhou pelo mundo. Assinou os originais como Francis Newton, em homenagem a um trompetista comunista que tocou com Billie Holiday em “Strange Fruit”, tema que denunciava a violência racista.

Mesmo quando caiu o ‘Muro de Berlim’ e os socialistas ficaram perdidos em meio a avalanche neoliberal globalizante, Hobsbawn manteve a fleuma, disciplinado e convicto em sua visão crítica de mundo. Naquele período, quando as livrarias vendiam os volumes dos autores de esquerda a preço de banana, como pude ver na rua Barão de Itapetininga, no centro paulistano, o velho mestre manteve a chama acesa, apesar de muitos o terem visto como delirante e anacrônico. Qual o quê. Não traiu a causa numa hora propícia para pular fora do barco como muitos fizeram. Não se enebriou com as promessas do livre mercado. Manteve-se firme, como verdadeiro observador do século XX que foi, nascido no fim da I Guerra Mundial. Um indignado. Como, afinal, poderia ser acomodado e aceitar o ‘fim da história’ sob o pisar da barbárie sobre as grandes massas?

Há poucos dias, na mais recente bienal de livros em São Paulo, peguei enorme fila numa determinada loja para comprar minha mais recente aquisição do velho mestre: “A Invenção da Tradição” (1977), com Terence Ranger. Como sempre, aquela delícia em descobrir algo novo, em aprender suas lições. No antigo e bom espírito acadêmico, adquirido no ambiente da querida PUC-SP.

Agora, no entanto, ele encerrou sua caminhada. Porém, seu legado permanece muito vivo e estimulante na direção da visão crítica e inquieta sobre a existência. Passando pelo Brasil, quando lançava “A Era dos Extremos”, disse num encontro com intelectuais: “Nós, socialistas, somos responsáveis por algo que não queríamos. Nós humanizamos o capitalismo quando nós queríamos destruí-lo”. E questionou com a habitual firmeza: “Que será da humanidade quando o capitalismo já não mais temer o socialismo?” Eu não sabia de uma coisa até dias atrás: ele curtia o choro. Chegou a ir ao Sovaco de Cobra, um boteco na Penha carioca existente nos anos 1970, para ver e ouvir os músicos populares brasileiros, se emocionando com eles. Hobsbawn era mesmo uma pessoa extraordinária. Sorte que tive em descobrir isso ainda em minha juventude, podendo aproveitar dessa convivência.

São Paulo, 4 de outubro de 2012.

 

Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.

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