Por #CarlosFino
Com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, as relações internacionais entram claramente numa era de maior crueza, quase brutalidade.
As referências aos belos e grandes princípios morais, com que em geral se enfeita a diplomacia, tendem agora a esbater-se; e o que passa a valer em todas as circunstâncias é o interesse imediato, a vantagem – real ou imaginária, interna ou externa – que um ou outro interlocutor possa oferecer a quem tenha mais poder.
“What can you do for us?” (“O que podem vocês fazer por nós?”) – perguntava recentemente, segundo a revista alemã Der Spiegel – um colaborador próximo de Trump a uma (chocada) delegação de Berlim enviada aos EUA para tentar estabelecer relações com a equipa do novo presidente norte-americano.
Os interesses e a correlação de forças sempre foram, é claro, determinantes. Mas a partir do momento em que a referência aos ideais humanistas de diálogo e cooperação se atenua e esse manto diáfano se rompe, é a nudez crua da verdade que se expõe através do recurso a métodos expeditos.
A semana finda foi fértil em exemplos disso mesmo. Primeiro, a insistência desbragada de Trump de que o México “pagará pelo muro”; depois, as súbitas restrições impostas à entrada nos EUA de cidadãos de uma série de países muçulmanos, incluindo muitos que já tinham autorização de permanência no país (carta verde) e agora se vêem, de um dia para o outro, ameaçados nos seus direitos, com as relações familiares e de trabalho em risco.
VISITA DA MADRE SUPERIORA À MANSÃO DA PLAY-BOY
Com a primeira ministra britânica, Theresa May, de visita oficial a Washington, Trump foi naturalmente mais delicado. Afinal trata-se da “pátria-mãe” e de um dos mais antigos e sólidos aliados, com quem os EUA mantêm desde há muitos anos uma “special relationship”.
Privilégio concedido a poucos – Theresa May teve até oportunidade, através de um discurso solene aos republicanos reunidos em Filadélfia – de tentar influenciar subtilmente as posições do novo presidente, exortando-o a manter a velha aliança “que formatou o mundo” e a não desfalecer no apoio à NATO, essa “pedra angular” do Ocidente.
Há mesmo uma imagem desta visita bem reveladora – nela vemos Trump, como se fora um gentleman, amparar delicadamente a senhora May, ajudando-a a descer alguns degraus ao longo do seu percurso na Casa Branca.
Com a saída da União Europeia, a Grã-Bretanha encontra-se fragilizada e um acordo comercial com os EUA serviria para mostrar que não está só, reforçando a sua posição nas negociações do Brexit com os seus antigos parceiros europeus.
Sem se comprometer em excesso, Trump deu a mão a esta old lady in need – velha senhora necessitada.
Mas Theresa não deixou, por seu turno, de pagar o necessário tributo.
Primeiro, como se ela não fora em tudo o contrário de Trump, a ponto do Economist comparar a sua ida a Washington à “visita de uma madre superiora à mansão da Play Boy” – enterrando no esquecimento tudo o que de ruim os seus colaboradores disseram durante a campanha sobre o novo inquilino da Casa Branca.
O actual ministro dos negócios estrangeiros britânico, Boris Johnson, por exemplo, chegou a considerar Trump detentor de uma “estupidificante ignorância” e por isso “inadequado” para ser presidente.
Depois, concedendo – rangendo os dentes – que sim, haveria que cooperar com Pútin (ainda que “sempre desconfiando”) e que – the last, but not the least – embora os EUA e o Reino Unido devam liderar, isso não significa o regresso às “políticas falhadas do passado” com que “se tentou refazer o mundo à nossa imagem”.
Captando rapidamente o sentido dos novos ventos que sopram de Washington, a primeira ministro britânica fechou o périplo com uma deslocação a Ankara, para se encontrar com o presidente Erdogan.
As críticas a violações dos direitos humanos, incluindo os atentados à liberdade de imprensa, passaram rapidamente para segundo plano, como parece que vai acontecer nas relações com a Polónia e com a Hungria, entre outros.
Como escrevia há dias o Guardian, “no incerto mundo pós-Brexit de May” e – acrescentamos nós – pós eleição de Trump, “a força conta mais que o direito”, os interesses mais que os valores. Manda quem pode, obedece quem deve.
Por Carlos Fino
Jornalista português, nascido em Lisboa, em 1948. Correspondente da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, destacou-se como correspondente de guerra, em conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. O primeiro repórter a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeio de Bagdad pelas tropas norte-americanas na Guerra do Golfo (2003). Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012). Escreve semanalmente para o Jornal Mundo Lusíada.