Em entrevista exclusiva ao Mundo Lusíada, Carlos do Carmo adianta em primeira mão que a candidatura do Fado a Patrimônio na UNESCO será apresentado em Paris, no mês de maio, e que este reconhecimento o fará “um homem realizado” na carreira.
Por Eulalia MorenoEspecial para Mundo Lusíada
Mundo Lusíada >> Ivan Lins e Carlos do Carmo.
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Casa de Portugal numa tarde chuvosa da sexta-feira, dia 11, aguardo o meu entrevistado até que “a paciência me doa”.
Ele chega, traz um cabide às costas supostamente com a roupa de palco e dirige-se para a galeria que lhe permite uma visão superior do salão de festas. Ali permanece sozinho com pensamentos e lembranças como se estivesse retornando a um porto seguro após muitas viagens e tormentas.
Não me atrevo a dirigir-lhe a palavra. Afinal já lá vão quase 36 anos desde a noite em que pela primeira vez o ouvi, ao lado da mãe, Lucília do Carmo, cantar n’ ”O Faia”. Os tempos eram outros, a Revolução dos Cravos marchava pelas ruas e enchia os jovens corações de esperanças. Nos hotéis de Lisboa, ocupados pelos denominados “retornados” das nossas ex-colonias, os funcionários não tinham muita paciência para aturar turistas interessadas em ouvir o Fado. Com uma certa má vontade, indica-me o recepcionista do Ritz: “Vá ao Faia, antes era Adega da Lucília. Lá come-se bem e a Lucília canta um Fado à maneira. Ah, sim, e lá está também o filho que canta”.
Pensei num inesperado português autêntico: “Ó, valha-me Deus! Lá vou eu ouvir a Mãe e o Menino da sua Mãe. Que grande maçada!”.E este que agora desce a escadaria e atravessa o salão em direção ao palco da Casa de Portugal, com o cabide às costas, é aquele “Menino da sua Mãe” que a minha ignorância não pressentia que já em 1974 tinha uma carreira respeitada de 11 anos e que me encantou logo no primeiro momento. O Menino que se tornou neste Homem que faz do Fado a sua profissão de fé. Carlos Alberto do Carmo Almeida.Máquina fotográfica, bloco e caneta aguardam o momento em que eu me decida a dizer-lhe que quero entrevistá-lo.
Ele no palco com os seus músicos, Ricardo Rocha na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola e Didi, no baixo. O filho Alfredo na mesa de som, quando alguém de forma inesperada adentra o espaço com a sua camisa e sorriso de mil cores: Ivan Lins. Em digressão na cidade de Belém do Pará, quase tão longe de São Paulo quanto Lisboa, ele “não poderia deixar de estar aqui para dar um abraço ao meu Amigo”.Do palco, Carlos do Carmo o reconhece, abre os braços, pede licença aos músicos, desce as escadas, se encaminha em direção a Ivan, com grande emoção o abraça e agradece pela presença. Chegou o meu momento: “Senhor Carlos do Carmo, me desculpe, mas eu queria entrevistá-lo”.E de repente o grande salão de festas da Casa de Portugal transforma-se, como num passe de mágica, na sala de visitas de Carlos do Carmo onde a conversa se inicia de forma amena e cordial.
Na sua memória recente, os mais de dez minutos ininterruptos de aplausos num Coliseu dos Recreios, em Lisboa, completamente rendido a sua apresentação de 18 músicas do inesquecível poeta de Abril, José Carlos Ary dos Santos no espetáculo “Ary Sempre!” organizado pelo Partido Comunista Português no passado dia 4 de dezembro.“A vida fez de mim um privilegiado pela família que tenho, pelos Amigos que me acompanham e até pela oportunidade de estar vivo depois de alguns graves problemas de saúde que tive nos últimos dez anos. Sou grato a tudo, mesmo já não podendo desfrutar da boa gastronomia e de um bom vinho. Bebo água, muita água e me sinto feliz até por isso. Com quase 70 anos e 47 anos de carreira, as digressões são mais contidas, os percursos e as distâncias melhor calculadas. Para me apresentar aqui, nesta noite, cheguei há três dias. Preciso desse tempo para me preparar, para descansar. Como já disse, cada espetáculo para mim é de vida ou de morte. Ainda agora no Coliseu o público aplaudia e pedia um ‘encore’ que, infelizmente, não dei porque não seria capaz, tão grande a emoção que vivi naquele palco ao recordar um dos grandes poetas da língua portuguesa e meu particular Amigo que nos deixou de forma tão prematura”.
Outro momento que recorda emocionado foi o de receber, em 2008, o premio Goya atribuído pela Academia Espanhola das Artes Cinematográficas pela música “Fado da Saudade” (sobre o “Fado Menor”, com letra de Fernando Pinto do Amaral) incluída no filme “Fados” de Carlos Saura.
“Conheci esse cineasta em Madrid através do Ivan Dias que foi o produtor executivo do filme. Foi ele quem apresentou ao Saura essa idéia depois de termos assistido a suas películas anteriores: ‘Flamenco’ (1995) e ‘Tango’ (1998). A pesquisa que resultou em ‘Fados’ teve a minha colaboração, como Consultor Musical. Fui a entrega desse premio com a minha esposa, Maria Judite, e quando ouvi o meu nome ser pronunciado como vencedor, nem sabia o que fazer. Subi ao palco, atrapalhei-me todo nos agradecimentos em espanhol e senti-me honrado pelo reconhecimento e sucesso desse filme que, sem dúvida, será um motivo a mais para que o Fado venha a ser reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial Cultural e Oral da Humanidade. E adianto-lhe em primeira mão: a candidatura já está pronta, o projeto levou cinco anos de pesquisas e estudos muito profundos e será apresentado na UNESCO, em Paris, no próximo mês de maio. E mais uma vez, e em primeira mão, caso esse reconhecimento seja concedido ao Fado, serei um homem realizado. Tudo o mais que acontecer na minha vida, daí para a frente, será lucro”.No filme “Fados” um dos momentos mais bonitos é quando Lucília do Carmo é homenageada com a música “Na Travessa da Palha” (Gabriel de Oliveira/Frederico de Brito) interpretada pela cantora mexicana Lila Downs.
“Algumas pessoas criticaram a inclusão da minha mãe nesse filme alegando ser um obséquio pelo fato de eu fazer parte da equipe. Nada disso. Minha mãe foi uma belíssima fadista, uma grande intérprete do Fado, uma mulher com muita garra e brio. Dela herdei isso e do meu pai, livreiro especializado em livros de medicina, o caráter e a disciplina. Alguns defeitos também? Não, esses são só meus”.Do Brasil lembra-se a primeira vez em que aqui se apresentou, em 1972, no Golden Room do Copacabana Palace, Rio de Janeiro, ao lado de Elis Regina e depois em São Paulo, no Maksoud Plaza com Wilson Simonal e Maísa Matarazzo de quem se tornou amigo. As suas referências musicais do Brasil tem o seu princípio e fim em Ivan Lins.“O Ivan é este músico de reconhecido valor e um Amigo por quem tenho um carinho muito especial porque está sempre presente. Ivan Lins é o brasileiro mais fadista que eu conheço. A nossa amizade chegou a um patamar onde nem cabe a idéia de nos apresentarmos juntos. Somos Amigos, muito Amigos”.
O Museu do Fado que este ano completou 11 anos de existência é mais um sonho realizado. “A diretora Sara Pereira a ele dedicou todo o seu tempo e a sua energia nestes últimos anos e merece que ele seja considerado, um dos três melhores museus nacionais. Ali me sinto em casa”.No palco, os grandes poetasO tempo passou rapidamente. Mais rápido do que a minha espera pela entrevista. São quase 19h45, os primeiros convidados já começam a chegar para a tradicional Ceia de Natal. É hora de Carlos do Carmo preparar-se para o espetáculo. Hora de substituir a sua camisa azul Belenenses pela roupa que, de forma até descuidada, trazia num cabide, às costas, quando chegou.“Sou muito grato ao Fado. O Fado deu-me tudo o que tenho, tudo o que sou e é com grande alegria que retorno a esta Casa e vos reencontro nesta noite que espero, seja do vosso agrado”.Pelo palco e através da dicção perfeita e da voz de Carlos do Carmo desfilam os grandes poetas. O público o acompanha com entusiasmo nas músicas mais conhecidas como “Lisboa, Menina e Moça” (Ary dos Santos, Fernando Tordo e Joaquim Pessoa/Paulo de Carvalho), “Por Morrer uma Andorinha” (Francisco de Brito, Américo Marques dos Santos/Francisco Viana) – com o fadista descendo do palco e circulando entre as mesas -, “Bairro Alto” (Carlos Simões Neves/Carvalhinho) e “Canoas do Tejo” (Frederico de Brito). Palmas que surgem para acompanhar as guitarras em “Bairro Alto” são didaticamente interrompidas. O fadista explica que o Fado não aceita palmas compassadas como acompanhamento e, menos paciente, repreende aqueles que insistem em conversar: “O Fado merece o vosso silêncio”.No final do espetáculo, depois de um “encore”, o cantor de Abril, das gentes e da cidade de Lisboa, aplaudido em pé e emocionado promete voltar a Casa de Portugal em 2010.